segunda-feira, 5 de setembro de 2016

KIERKEGAARD - COLEÇÃO FILOSOFIA PASSO-A-PASSO - Alvaro L. M. Valls; Jorge Miranda de Almeida.

Filosofia Passo - a - Passo.  KIERKEGAARD: N. 78 - Alvaro L. M. Valls; Jorge Miranda de Almeida -Editora: ZAHAR Coleção: FILOSOFIA
p.67-78





Seleção de textos 





Aforismos do jovem esteta de A alternativa I 


Afora meu numeroso círculo de amizades restante, ainda tenho uma confidente íntima: minha melancolia; em meio à minha alegria, em meio ao meu trabalho, ela me acena, chama-me à parte, ainda que eu permaneça corporalmente no mesmo lugar. Minha melancolia é a mais fiel das amantes que já conheci. Que há de estranho em que eu também a ame? 

Perguntem-me o que quiserem, só não me perguntem acerca de razões. A uma menina se perdoa se não souber fornecer as razões, ela vive no sentimento, como se diz. Comigo é diferente. Em geral eu tenho tantas razões e, no mais das vezes, intimamente contraditórias, que por isso mesmo se me torna impossível fornecer as razões. Com causa e efeito, parece-me que também as coisas não combinam como deviam. Ora surge de uma causa enorme e poderosa um efeito bem pequenininho e imperceptível, às vezes mesmo efeito nenhum; ora uma causa minúscula desencadeia um efeito gi­gantesco. 
É preciso uma grande ingenuidade para crer que adianta gritar e clamar pelo mundo como se com isso se conseguisse alterar o próprio destino. Tome-se a coisa como ela se  apresenta, renunciando-se à prolixidade. Quando, em minha juventude, eu entrava num restaurante, dizia ao gar­çom: Um pedaço bom, um pedaço bem bom, do lombo, que não seja gordo demais. O garçom talvez nem ouvisse meu grito, e menos ainda atentasse para ele, supondo que minha voz pudesse chegar até a cozinha e pudesse mover aquele que cortava a carne. Muito embora tudo isso acontecesse, talvez riem mesmo existisse um bom pedaço em todo o es­peto. Agora eu não grito jamais. 




Migalhas filosóficas 

O que aconteceu, aconteceu, assim como aconteceu, e assim é imutável; mas essa imutabilidade é a da necessidade? A imutabilidade do passado consiste em que o "assim" de sua realidade não pode vir a ser diferente; mas segue-se daí que o "como" possível desse passado não teria podido vir a ser de outra maneira? A imutabilidade do necessário, bem ao contrário, consiste no relacionar-se sempre consigo mesmo e relacionar-se sempre consigo mesmo do mesmo modo. Ela exclui toda e qualquer mudança, não se contenta com a imutabilidade do passado que, como foi mostrado, não só é dialética em relação a uma mudança anterior, da qual resulta, mas também tem de ser dialética até mesmo em relação a uma mudança de ordem superior, que a anula .... 

O futuro ainda não aconteceu, mas não é por isso menos necessário do que o passado, visto que o passado não se tornou mais necessário por ter acontecido.mas ao contrário mostrou, por ter acontecido, que não era necessário. Se o passado se tivesse tornado necessário, não se deveria poder concluir o oposto no que concerne ao futuro, porém, ao contrário, daí se seguiria que o futuro também era necessário. Caso a necessidade pudesse penetrar num único ponto, não se poderia mais falar de passado e de futuro. Querer predizer o futuro (profetizar) e querer compreender a necessidade do passado é completamente a mesma coisa, e é apenas uma questão de moda se a uma geração uma parece mais plausível do que a outra. 

O passado, afinal de contas deveio; o devir é a mudança  da realidade pela liberdade. Ora , se o passado se tivesse tornado necessário, não mais pertenceria à liberdade, isto é, àquilo pelo qual ele veio a ser. A liberdade estaria então numa posição ruim, faria, ao mesmo tempo rir e chorar, pois levaria a culpa daquilo que não seria da competência, produziria aquilo que a necessidade logo haveria de engolir, e a própria liberdade tornar -se-i- a uma ilusão, e o devir não menos; a liberdade tornar-se-ia bruxaria, e o devir, alarme falso. 

O conceito de angústia 

A inocência é ignorância. Na inocência, o homem não  está determinado como espírito, mas determinado psiquicamente em unidade imediata com sua naturalidade.O espirito esta está sonhando no homem. Tal interpretação esta em perfeita concordância com a da Bíblia que, ao negar ao homem em em estado de inocência o conhecimento da diferença entre bem e mal, condena todas as fantasmagorias católicas sobre o mérito. 

Nesse estado há paz e repouso, mas ao mesmo tempo há outra coisa que, sem embargo, não é agitação nem luta, pois não há nada contra o que lutar. Mas, então, o que é? Nada. Mas que efeito exerce esse nada? Engendra angústia. Esse é o profundo mistério da inocência: ela é ao mesmo tempo angústia. Sonhando, projeta o espírito sua própria realidade, mas essa realidade é nada, porém esse nada a inocência vê continuamente fora dela .... 

A angústia é a possibilidade da liberdade, só essa angústia é, pela fé, absolutamente formadora, na medida em que consome todas as coisas finitas, descobre todas as suas ilusões .... Aquele que é formado pela angústia é formado pela possibilidade e só quem for formado pela possibilidade estará formado de acordo com sua infinitude. A possibilidade é, por conseguinte, a mais pesada de todas as categorias .... Não, na possibilidade tudo é igualmente possível e aquele que, em verdade, foi educado pela possibilidade entendeu tanto aquela que o espanta quanto a que lhe sorri .... Mas para que um indivíduo deva ser formado assim tão absoluta e infinitamente pela possibilidade, ele tem de ser honesto frente à possibilidade e ter a fé. Por fé compreendo aqui o que Hegel, à sua maneira, em algum lugar, corretissimamente, chama de a certeza interior que agarra de antemão a infinitude. Se forem administradas ordenadamente as descobertas da possibilidade, aí a possibilidade há de descobrir todas as finitudes, mas há de idealizá-las na forma da infinitude e há de mergulhar o indivíduo na angústia, _até que este, por sua parte, vença-as na antecipação da fé. 


A doença para a morte 


O homem é espírito. Mas o que é espírito? Espírito é o si­ mesmo. Mas o que é o si-mesmo?   O si-mesmo é uma relação que se relaciona consigo mesma, ou consiste no seguinte: que na relação a relação se relacione consigo mesma; o si-mesmo não é a relação, mas consiste em que a relação se relacione consigo mesma. O homem é uma síntese de infinitude e de finitude, do temporal e do eterno, de liberdade e de necessi­dade, em suma, é uma síntese .... Se essa relação que se rela­ciona consigo mesma é constituída por um outro, então ela é decerto o terceiro termo .... Uma relação assim derivada, constituída, é o si-mesmo humano, uma relação que se re­laciona consigo mesma e, no relacionar-se consigo mesma, relaciona-se com um outro .... Se o si-mesmo humano tives­se se constituído, só poderia haver uma forma de desespero: não querer ser si-mesmo, querer livrar-se de si-mesmo; não se poderia falar da outra forma, o querer desesperadamente ser si-mesmo. Com efeito.essa fórmula é a expressão da total dependência dessa relação (do si-mesmo), ela exprime que o si-mesmo não pode, por si mesmo, nem alcançar o equi­líbrio e o repouso nem aí permanecer, mas só o conseguirá quando, ao relacionar-se consigo mesmo, relacionar-se também com aquele que constituiu a totalidade da relação. Sim, essa segunda forma de desespero (desesperadamente querer ser si-mesmo) está tão longe de designar uma espécie particular de desespero que, ao contrário, todo desespero, em última análise, dissolve-se nela e é reconduzido a ela .... A má relação do desespero não é uma simples má relação, mas uma má relação numa relação que se relaciona consigo mesma e é constituída por um outro, de modo que a má relação, naquela relação presente, ao mesmo tempo se refle­te infinitamente na relação para com o Poder que a consti­tuiu. Pois essa é a fórmula que descreve o estado do si-mes­mo quando o desespero está completamente erradicado: relacionando-se consigo mesmo, e querendo ser ele mesmo, o si-mesmo se funda transparentemente no Poder que o constituiu. 

Referências e fontes 

A maioria das obras de Kierkegaard não está traduzida para o português. O pesquisador teria de usar as Samlede Vaerker, ou as que o Centro de Investigações de Kierkegaard, de Co­penhague, vem publicando, com grande aparato crítico, sob o título de Soren Kierkegaards Skrifter (SKS). Serão 55 volu­mes, com as obras e os cadernos dos diários. Há somente traduções fragmentárias dos Diários. Pode-se ler Kierke­gaard em francês nas Oeuvres Completes (Paris, Orante), or­ganizadas por Paul-Henri e Else-Marie Tisseau, ou em in­glês, de Princeton, Kierkegaard's Writings, organizada por Howard e Edna Hong. Quem lê alemão dispõe das Gesam­melte Werke, de Gütersloh, traduzidas por Emanuel Hirsch e Hayo Gerdes. Há traduções italianas também muito úteis. 

Em português, as traduções mais antigas incluem O diário do sedutor, O conceito de angústia e O desespero huma­no - traduções sofríveis. Temor e tremor pode ser lido na coleção Os Pensadores. A melhor coletânea é a de E. Reich­mann: Soren Kierkegaard - Textos selecionados, esgotada e com nova edição revisada prevista. Edições 70, de Portugal, publicou o Ponto de Vista. In vino veritas tem uma boa tra­dução, recente, de J.M. Justo (Lisboa). 

No Brasil, vão surgindo traduções a partir do dinamar­quês. Em 1991, O conceito de ironia; em 1995, as Migalhas filosóficas. Mais tarde, Sílvia S. Sampaio traduziu É preciso duvidar de tudo, e, em 2005, saíram As obras do amor, pela Editora Universidade São Francisco. Uma edição crítica de O conceito de angústia está em andamento, prevista para 2008. Henri N. Levinspuhl traduziu muitos títulos assina­dos por Kierkegaard, como vários Discursos edificantes

Na internet, encontram-se os demais pormenores edi­toriais, além. de muitos outros que não cabem aqui. A So­breski (Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard) tem uma página com informações úteis. 
O que se lia antigamente sobre Kierkegaard no Brasil apenas traduzia opiniões sem fundamento ou meros preconceitos. Ernani Reichmann foi a grande exceção, e continua lembra­do como a estrela maior desse firmamento. Hoje já conta­mos com alguns doutores que leram Kierkegaard com aten­ção. Nomes como Ricardo Gouvêa, Sílvia Sampaio, Márcio de Paula, Deyve Santos, Guiomar de Grammont, Cleide Scarlatelli e outros mostram muito estudo dedicado ao dinamarquês. Podemos indicar dez títulos acessíveis, introdu­tórios, que contêm uma bibliografia bem pormenorizada: 

De Paula, Márcio Gimenes. Socratismo e cristianismo em Kierkegaard: o escândalo e a loucura. São Paulo, Anna­blume, 2001. 

Farago, France. Compreender Kierkegaard. Petrópolis, Vozes, 2006. 

Gouvêa, Ricardo Q. A palavra e o silêncio. Kierkegaard e a relação dialética entre razão e fé em Temor e tremor. São Paulo: Custom, 2002. 

___ . Paixão pelo paradoxo. Uma introdução a Kierke­gaard. São Paulo, Novo Século, 2000. 

Hannay, A. e G. Marino. The Cambridge Companion to Kier­kegaard. Cambridge University Press, 1998. Esse livro traz bons comentadores estrangeiros atuais. 




Leituras recomendadas 

Le Blanc, Charles. Kierkegaard. São Paulo, Estação Liberda­de, 2003. 

Revista Filosofia Unisinos, vol.6, n.3, set-dez 2005. Número da revista dedicado a Kierkegaard. 

Roos, Jonas. Razão e fé no pensamento de Kierkegaard. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2006. Inteligente dissertação de perspectiva teológica. 

Valls, Alvaro. Do desespero silencioso ao elogio do amor desin­teressado. Porto Alegre, Escritos, 2004. Com traduções e comentários. 

___ . Entre Sócrates e Cristo. Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre, Edipucrs, 2000. 


Sobre os autores 


Jorge Miranda de Almeida nasceu na Bahia e estudou na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É doutor em filosofia pela Universidade Gregoriana, de Roma, com tese sobre Kierkegaard. Pesquisa especialmente as relações entre Lévinas e Kierkegaard e leciona ética e filosofia con­temporânea na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb ), Bahia. Publicou "A categoria do edificante na cons­trução da ética-segunda em Kierkegaard', na revista Filoso­fia Unisinos, ano 6, n.3, p.276-293, set-dez 2005. É o atual presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierke­gaard (Sobreski). E-mail: mirandaj@uol.com.br

Alvaro Luiz Montenegro Valls nasceu no Rio Grande do Sul e estudou em São Paulo. É doutor em filosofia pela Univer­sidade de Heidelberg, Alemanha, com tese sobre Kierke­gaard. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) por três décadas, hoje leciona ética e filosofia moderna na Unisinos e é pesquisador do CNPq. Traduziu do dinamarquês O conceito de ironia (Universidade São Fran­cisco), Migalhas filosóficas (Vozes), As obras do amor (Uni­versidade São Francisco), É preciso duvidar de tudo (com Sílvia S. Sampaio, Martins Fontes), e Do desespero silencioso ao elogio do amor desinteressado (Escritos). É autor de O que é ética (Brasiliense) e Entre Sócrates e Cristo. Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. (Edipucrs). Ajudou a criar a Sobreski e um boletim eletrônico intitulado Severino. E­mail: alvalls@unisinos.br

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