Filosofia Passo - a - Passo. KIERKEGAARD: N. 78 - Alvaro L. M. Valls; Jorge Miranda de Almeida -Editora: ZAHAR Coleção: FILOSOFIA
p.67-78
Trecho Online do livro: https://books.google.com.br/books?id=w2C7pvjIMeMC&pg=PA56&dq=compreender+Kierkegaard&hl=pt-BR&sa=X&redir_esc=y#v=onepage&q=compreender%20Kierkegaard&f=false
Seleção de textos
Aforismos do jovem esteta de A alternativa I
Afora meu numeroso círculo de amizades restante, ainda tenho uma confidente íntima: minha melancolia; em meio à minha alegria, em meio ao meu trabalho, ela me acena, chama-me à parte, ainda que eu permaneça corporalmente no mesmo lugar. Minha melancolia é a mais fiel das amantes que já conheci. Que há de estranho em que eu também a ame?
Perguntem-me o que quiserem, só não me perguntem acerca de razões. A uma menina se perdoa se não souber fornecer as razões, ela vive no sentimento, como se diz. Comigo é diferente. Em geral eu tenho tantas razões e, no mais das vezes, intimamente contraditórias, que por isso mesmo se me torna impossível fornecer as razões. Com causa e efeito, parece-me que também as coisas não combinam como deviam. Ora surge de uma causa enorme e poderosa um efeito bem pequenininho e imperceptível, às vezes mesmo efeito nenhum; ora uma causa minúscula desencadeia um efeito gigantesco.
É preciso uma grande ingenuidade para crer que adianta gritar e clamar pelo mundo como se com isso se conseguisse alterar o próprio destino. Tome-se a coisa como ela se apresenta, renunciando-se à prolixidade. Quando, em minha juventude, eu entrava num restaurante, dizia ao garçom: Um pedaço bom, um pedaço bem bom, do lombo, que não seja gordo demais. O garçom talvez nem ouvisse meu grito, e menos ainda atentasse para ele, supondo que minha voz pudesse chegar até a cozinha e pudesse mover aquele que cortava a carne. Muito embora tudo isso acontecesse, talvez riem mesmo existisse um bom pedaço em todo o espeto. Agora eu não grito jamais.
Migalhas filosóficas
O que aconteceu, aconteceu, assim como aconteceu, e assim é imutável; mas essa imutabilidade é a da necessidade? A imutabilidade do passado consiste em que o "assim" de sua realidade não pode vir a ser diferente; mas segue-se daí que o "como" possível desse passado não teria podido vir a ser de outra maneira? A imutabilidade do necessário, bem ao contrário, consiste no relacionar-se sempre consigo mesmo e relacionar-se sempre consigo mesmo do mesmo modo. Ela exclui toda e qualquer mudança, não se contenta com a imutabilidade do passado que, como foi mostrado, não só é dialética em relação a uma mudança anterior, da qual resulta, mas também tem de ser dialética até mesmo em relação a uma mudança de ordem superior, que a anula ....
O futuro ainda não aconteceu, mas não é por isso menos necessário do que o passado, visto que o passado não se tornou mais necessário por ter acontecido.mas ao contrário mostrou, por ter acontecido, que não era necessário. Se o passado se tivesse tornado necessário, não se deveria poder concluir o oposto no que concerne ao futuro, porém, ao contrário, daí se seguiria que o futuro também era necessário. Caso a necessidade pudesse penetrar num único ponto, não se poderia mais falar de passado e de futuro. Querer predizer o futuro (profetizar) e querer compreender a necessidade do passado é completamente a mesma coisa, e é apenas uma questão de moda se a uma geração uma parece mais plausível do que a outra.
O passado, afinal de contas deveio; o devir é a mudança da realidade pela liberdade. Ora , se o passado se tivesse tornado necessário, não mais pertenceria à liberdade, isto é, àquilo pelo qual ele veio a ser. A liberdade estaria então numa posição ruim, faria, ao mesmo tempo rir e chorar, pois levaria a culpa daquilo que não seria da competência, produziria aquilo que a necessidade logo haveria de engolir, e a própria liberdade tornar -se-i- a uma ilusão, e o devir não menos; a liberdade tornar-se-ia bruxaria, e o devir, alarme falso.
O conceito de angústia
A inocência é ignorância. Na inocência, o homem não está determinado como espírito, mas determinado psiquicamente em unidade imediata com sua naturalidade.O espirito esta está sonhando no homem. Tal interpretação esta em perfeita concordância com a da Bíblia que, ao negar ao homem em em estado de inocência o conhecimento da diferença entre bem e mal, condena todas as fantasmagorias católicas sobre o mérito.
Nesse estado há paz e repouso, mas ao mesmo tempo há outra coisa que, sem embargo, não é agitação nem luta, pois não há nada contra o que lutar. Mas, então, o que é? Nada. Mas que efeito exerce esse nada? Engendra angústia. Esse é o profundo mistério da inocência: ela é ao mesmo tempo angústia. Sonhando, projeta o espírito sua própria realidade, mas essa realidade é nada, porém esse nada a inocência vê continuamente fora dela ....
A angústia é a possibilidade da liberdade, só essa angústia é, pela fé, absolutamente formadora, na medida em que consome todas as coisas finitas, descobre todas as suas ilusões .... Aquele que é formado pela angústia é formado pela possibilidade e só quem for formado pela possibilidade estará formado de acordo com sua infinitude. A possibilidade é, por conseguinte, a mais pesada de todas as categorias .... Não, na possibilidade tudo é igualmente possível e aquele que, em verdade, foi educado pela possibilidade entendeu tanto aquela que o espanta quanto a que lhe sorri .... Mas para que um indivíduo deva ser formado assim tão absoluta e infinitamente pela possibilidade, ele tem de ser honesto frente à possibilidade e ter a fé. Por fé compreendo aqui o que Hegel, à sua maneira, em algum lugar, corretissimamente, chama de a certeza interior que agarra de antemão a infinitude. Se forem administradas ordenadamente as descobertas da possibilidade, aí a possibilidade há de descobrir todas as finitudes, mas há de idealizá-las na forma da infinitude e há de mergulhar o indivíduo na angústia, _até que este, por sua parte, vença-as na antecipação da fé.
A doença para a morte
O homem é espírito. Mas o que é espírito? Espírito é o si mesmo. Mas o que é o si-mesmo? O si-mesmo é uma relação que se relaciona consigo mesma, ou consiste no seguinte: que na relação a relação se relacione consigo mesma; o si-mesmo não é a relação, mas consiste em que a relação se relacione consigo mesma. O homem é uma síntese de infinitude e de finitude, do temporal e do eterno, de liberdade e de necessidade, em suma, é uma síntese .... Se essa relação que se relaciona consigo mesma é constituída por um outro, então ela é decerto o terceiro termo .... Uma relação assim derivada, constituída, é o si-mesmo humano, uma relação que se relaciona consigo mesma e, no relacionar-se consigo mesma, relaciona-se com um outro .... Se o si-mesmo humano tivesse se constituído, só poderia haver uma forma de desespero: não querer ser si-mesmo, querer livrar-se de si-mesmo; não se poderia falar da outra forma, o querer desesperadamente ser si-mesmo. Com efeito.essa fórmula é a expressão da total dependência dessa relação (do si-mesmo), ela exprime que o si-mesmo não pode, por si mesmo, nem alcançar o equilíbrio e o repouso nem aí permanecer, mas só o conseguirá quando, ao relacionar-se consigo mesmo, relacionar-se também com aquele que constituiu a totalidade da relação. Sim, essa segunda forma de desespero (desesperadamente querer ser si-mesmo) está tão longe de designar uma espécie particular de desespero que, ao contrário, todo desespero, em última análise, dissolve-se nela e é reconduzido a ela .... A má relação do desespero não é uma simples má relação, mas uma má relação numa relação que se relaciona consigo mesma e é constituída por um outro, de modo que a má relação, naquela relação presente, ao mesmo tempo se reflete infinitamente na relação para com o Poder que a constituiu. Pois essa é a fórmula que descreve o estado do si-mesmo quando o desespero está completamente erradicado: relacionando-se consigo mesmo, e querendo ser ele mesmo, o si-mesmo se funda transparentemente no Poder que o constituiu.
Referências e fontes
A maioria das obras de Kierkegaard não está traduzida para o português. O pesquisador teria de usar as Samlede Vaerker, ou as que o Centro de Investigações de Kierkegaard, de Copenhague, vem publicando, com grande aparato crítico, sob o título de Soren Kierkegaards Skrifter (SKS). Serão 55 volumes, com as obras e os cadernos dos diários. Há somente traduções fragmentárias dos Diários. Pode-se ler Kierkegaard em francês nas Oeuvres Completes (Paris, Orante), organizadas por Paul-Henri e Else-Marie Tisseau, ou em inglês, de Princeton, Kierkegaard's Writings, organizada por Howard e Edna Hong. Quem lê alemão dispõe das Gesammelte Werke, de Gütersloh, traduzidas por Emanuel Hirsch e Hayo Gerdes. Há traduções italianas também muito úteis.
Em português, as traduções mais antigas incluem O diário do sedutor, O conceito de angústia e O desespero humano - traduções sofríveis. Temor e tremor pode ser lido na coleção Os Pensadores. A melhor coletânea é a de E. Reichmann: Soren Kierkegaard - Textos selecionados, esgotada e com nova edição revisada prevista. Edições 70, de Portugal, publicou o Ponto de Vista. In vino veritas tem uma boa tradução, recente, de J.M. Justo (Lisboa).
No Brasil, vão surgindo traduções a partir do dinamarquês. Em 1991, O conceito de ironia; em 1995, as Migalhas filosóficas. Mais tarde, Sílvia S. Sampaio traduziu É preciso duvidar de tudo, e, em 2005, saíram As obras do amor, pela Editora Universidade São Francisco. Uma edição crítica de O conceito de angústia está em andamento, prevista para 2008. Henri N. Levinspuhl traduziu muitos títulos assinados por Kierkegaard, como vários Discursos edificantes.
Na internet, encontram-se os demais pormenores editoriais, além. de muitos outros que não cabem aqui. A Sobreski (Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard) tem uma página com informações úteis.
O que se lia antigamente sobre Kierkegaard no Brasil apenas traduzia opiniões sem fundamento ou meros preconceitos. Ernani Reichmann foi a grande exceção, e continua lembrado como a estrela maior desse firmamento. Hoje já contamos com alguns doutores que leram Kierkegaard com atenção. Nomes como Ricardo Gouvêa, Sílvia Sampaio, Márcio de Paula, Deyve Santos, Guiomar de Grammont, Cleide Scarlatelli e outros mostram muito estudo dedicado ao dinamarquês. Podemos indicar dez títulos acessíveis, introdutórios, que contêm uma bibliografia bem pormenorizada:
De Paula, Márcio Gimenes. Socratismo e cristianismo em Kierkegaard: o escândalo e a loucura. São Paulo, Annablume, 2001.
Farago, France. Compreender Kierkegaard. Petrópolis, Vozes, 2006.
Gouvêa, Ricardo Q. A palavra e o silêncio. Kierkegaard e a relação dialética entre razão e fé em Temor e tremor. São Paulo: Custom, 2002.
___ . Paixão pelo paradoxo. Uma introdução a Kierkegaard. São Paulo, Novo Século, 2000.
Hannay, A. e G. Marino. The Cambridge Companion to Kierkegaard. Cambridge University Press, 1998. Esse livro traz bons comentadores estrangeiros atuais.
Leituras recomendadas
Le Blanc, Charles. Kierkegaard. São Paulo, Estação Liberdade, 2003.
Revista Filosofia Unisinos, vol.6, n.3, set-dez 2005. Número da revista dedicado a Kierkegaard.
Roos, Jonas. Razão e fé no pensamento de Kierkegaard. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2006. Inteligente dissertação de perspectiva teológica.
Valls, Alvaro. Do desespero silencioso ao elogio do amor desinteressado. Porto Alegre, Escritos, 2004. Com traduções e comentários.
___ . Entre Sócrates e Cristo. Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre, Edipucrs, 2000.
Sobre os autores
Jorge Miranda de Almeida nasceu na Bahia e estudou na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É doutor em filosofia pela Universidade Gregoriana, de Roma, com tese sobre Kierkegaard. Pesquisa especialmente as relações entre Lévinas e Kierkegaard e leciona ética e filosofia contemporânea na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb ), Bahia. Publicou "A categoria do edificante na construção da ética-segunda em Kierkegaard', na revista Filosofia Unisinos, ano 6, n.3, p.276-293, set-dez 2005. É o atual presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard (Sobreski). E-mail: mirandaj@uol.com.br
Alvaro Luiz Montenegro Valls nasceu no Rio Grande do Sul e estudou em São Paulo. É doutor em filosofia pela Universidade de Heidelberg, Alemanha, com tese sobre Kierkegaard. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) por três décadas, hoje leciona ética e filosofia moderna na Unisinos e é pesquisador do CNPq. Traduziu do dinamarquês O conceito de ironia (Universidade São Francisco), Migalhas filosóficas (Vozes), As obras do amor (Universidade São Francisco), É preciso duvidar de tudo (com Sílvia S. Sampaio, Martins Fontes), e Do desespero silencioso ao elogio do amor desinteressado (Escritos). É autor de O que é ética (Brasiliense) e Entre Sócrates e Cristo. Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. (Edipucrs). Ajudou a criar a Sobreski e um boletim eletrônico intitulado Severino. Email: alvalls@unisinos.br
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