segunda-feira, 5 de setembro de 2016

A REPETIÇÃO EM HEGEL, KIERKEGAARD E NIETZSCHE





Acaso e repetição em psicanálise : uma introdução à teoria das pulsões / 1996 - ( Livro) 

GARCÍA-ROZA, L. A. Acaso e repetição em psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1996. 128 p. ISBN 85-8506-154-5


p.27-38








A REPETIÇÃO EM HEGEL, KIERKEGAARD E NIETZSCHE


No começo era o caos - é o que nos diz Hesíodo na Teogonia. Sobre esse lugar indiferenciado, inabitado pelos deuses e pelos homens, anterior ao primeiro dia e à primeira palavra, cai o mais absoluto silêncio. 
Rompido o silêncio do caos, o que se ouviu foi a palavra enigmática e lacunar do mito contando a história dos começos. Frente ao indeterminado, surge ô mito narrando a ordem pri­meira, ordem· esta concebida não como anterior ao caos, mas como um efeito dele, não. como fundamento necessário - aos acontecimentos ou como ,razão imanente ao mundo e às coisas, mas como resultante do acaso original. O mythos é a narrativa des­ses começos. 

Estrangeiro pela palavra, o homem procurou ordenar o caos criando modelos para os acontecimentos presentes e futu­ros. É a partir desses acontecimentos primeiros que o homem grego vai forjar o conceito de natureza. Os feitos dos deuses e dos heróis não são determinados a priori, não obedecem a ne­nhuma ordem preestabelecida, não são a manifestação de nenhuma lei. Os deuses e os heróis não atualizam uma natureza, eles produzem-na a partir do caos original. Esses acontecimentos primordiais, uma vez produzidos, transformam-se em modelos pura a conduta dos homens. O homem das culturas arcaicas e primitivas repete esse modelo, sendo que é através dessa repeti­ção que os fatos do cotidiano ganham sentido e realidade. Os acontecimentos do mundo não possuíam realidade em si mesmos, mas apenas na medida em que repetiam acontecimentos pretéritos. Ora, como todo acontecimento original caracteriza­va-se0 por ser um ato de criação por parte de um deus ou de um herói, a conduta exemplar era aquela que repetia indefinidamente a criação original. Temos, assim, acontecimentos sagrados e acontecimentos profanos, os primeiros repetindo um modelo original, e os segundos sendo estranhos a esse modelo, Os atos exemplares são, portanto, a - históricos, cabendo a historicidade apenas aos atos profanos. O mundo, no que possui de verdadeiro (ou de sagrado), é uma repetição. O que não é repetição permanece imerso no caos, carecendo de sentido e de realidade. 

Assim, desde a mais remota antigüidade, a repetição é uma questão central para o homem. Desde o mito, passando pe­lo "eterno retorno" de Heráclito até Nietzsche, o terna da repe­tição atravessa a história do pensamento ocidental. Ou ando ele ressurge na obra de Freud - no início, timidamente, até 'trans­formar-se em tema central de Além do princípio de prazer - o faz com o peso dessa história, e o Édipo é sua marca registrada. 

Dentre os autores que tratam da questão da repetição, e que fazem parte do mesmo solo do saber no interior do qual a psicanálise fez sua emergência, Hegel, Kierkegaard e Nietzsche transformaram-se em referenciais privilegiados pelos comentadores de Freud, apesar de a influência direta que os dois primeiros possam ter tido sobre ele ser quase nula. Nós porém não podemos ignorá-los. Se há algo que podemos considerar como sendo comum a Hegel, Kierkegaard, Nietzsche e Freud, é, em primeiro lugar, a importância que eles conferem à repetição, e, em segundo lugar, o fato de que para eles repetição não é reminiscência.

A aproximação entre Hegel e Freud através do conceito de repe­tição já foi feita há trinta anos por Jean Hyppolite, numa conferência pronunciada na Sociedade Francesa de Psicanálise.' Hyppolite propõe aproximar a Fenomenologia do Espírito de Hegel e A interpretação de sonhos de Freud através da noção de retrospecção, noção esta que se encontra também na base da leitura que Édipo faz de sua própria história, e que encerra o fundamental da prática psicanalítica . 

O fio condutor da releitura que. Hyppolite faz de Fenomenologia é a noção de verdade entendida como desvelamento, que se efetua pela intersubjetividade ou, na terminologia hege­liana, pela intercomunicação de duas autoconsciências humanas. Segundo Hegel, essa comunicação intersubjetiva só pode ser fei­ta pela linguagem, única mediação possível entre autoconsciên­cias, isto é, único meio dessas autoconsciências saírem de suas respectivas certezas subjetivas e constituírem uma verdade ob­jetiva. Mas como nos diz Hegel, a verdade nunca é um dado, mas o resultado de um processo que ao mesmo tempo a produz e a revela. Esse desvelamento implica, porém, uma releitura - nurn primeiro momento, o fenômeno é considerado enquanto vivido, enquanto experiência do sujeito (certeza subjetiva); num segun­do momento, o da releitura, ele é incluído na .totalidade do Es­pírito (Geist) que revela a sua verdade. 

O que Hvppolite propõe é uma analogia entre o percurso realizado pela consciência, desde o seu momento de inconsciên­cia-de-si até a autoconsciência, e o caminho percorrido por Édi­po em direção à sua verdade de parricida e incestuoso, Essa ex­periência, que é descrita na Fenomenologia do Espírito de He­gel, é também aquela que realiza o paciente na prática clínica psicanalítica. É importante ressaltar que tanto em Hegel como em Freud, esse percurso se constitui com a experiência que o sujeito faz de si mesmo e não como algo que lhe possa ser acres­centado de fora. Da mesma forma como Edipo não se reconhe­ceria parricida e incestuoso se essa verdade lhe fosse dita logo após ter assumido o trono de Tebas e ter-se casado com Jocasta, também o paciente psicanalítico não reconheceria como sua a his­tória que lhe fosse comunicada prematuramente pelo psicanalisa. O desconhecimento de Édipo quanto à sua verdade assim co­mo o desconhecimento do paciente quanto ao significado do seu sintoma são da mesma natureza que o desconhecimento com que é marcada a consciência ingênua de que Hegel nos fala na Fenomenologia do Espírito. A certeza (subjetiva) que carac­teriza a consciência somente será substituída pela verdade (obje­tiva) ao final do processo que revelará, retrospectivamente, ocaráter ocultador do momento inicial. Não há outro caminho para a verdade senão aquele que se constitui pela experiência que a consciência empreende dela mesma. É portanto a Totali­dade que confere verdade plena ao fenômeno; sem ela, ele permanece incompleto enquanto sentido. Trata-se de uma concep­ção,essencialmente grega da realidade. 


A visão kierkeqaardiana da repetição difere da de Hegel na medida em que não admite a totalização (o mesmo podemos di­zer da concepção freudiana). Está mais próxima da visão cristã do. que da visão grega, na medida em que a visão cristã admite que a · repetição pela fé apresenta a possibilidade de uma renovação.

Em Kierkegaard, o tema da repetição não está presente apenas no livro que leva este título, mas desenvolve-se na parte de sua obra que ele designa como 'estética". Assim, por exem­plo, temos não apenas a repetição rnal sucedida de Constantino Constantius em A repetição, como também a repetição bem-su­cedida de Johannes de Silentio em Temor e tremor. 2 Já no pre­fácio do primeiro, Kierkegaard nos adverte que repetição não é reminiscência; não se trata também da repetição natural, identi­ficada com a lei, nada que se assemelhe ao movimento dos as­tros ou ao ciclo das estações. O conceito surge da confrontação da subjetividade com a realidade, e é colocada sob a forma de uma pergunta inicial: "Uma coisa, ao ser repetida, ganha ou perde?"

Uma primeira resposta poderia ser a de que haveria indis­cutivelmente uma perda, posto que o ganho só poderia advir de uma fuga à repetição, tornando possível a vivência do instan­te. Este não é, porém, o ponto de vista de Constantino Constan­tius, para quem a existência não é o puro acaso do devir, mas re­petição. Repetição, diz ele, tomada "no sentido grego" do ter­mo. É no conceito grego de Kinesis (movimento, mudança). particularmente tal como foi pensado por Aristóteles, que Kierkegaard vai buscar apoio para empreender sua crítica à concepção hegeliana de mudança. No entanto, apesar da evidente crítica de Constantino Constantius a Hegel, e do tão declarado anti-hegelianismo de Kierkegaard, não seria inteiramente desca­bido afirmarmos que o pensador' dinamarquês retoma a noção hegeliana de "releitura" conferindo-lhe novo sentido. Claro está que isto não implica estabelecermos uma filiação de Kierkegaard a Hegel (pelo menos num sentido linear) ou em aproximarmos o conteúdo de ambos os pensamentos; o que está sendo assinalado aqui, como presente a ambos, é o conceito de repetição.

Ao retomar a noção de repetição, Kierkegaard vai distinguir o que ele chama de repetição numérica (pura reprodução de algo) da repetição propriamente dita. Enquanto a primeira é a repetição que encontramos na natureza, uma forma de manutenção do mesmo, a segunda é produtora de diferenças; en­quanto a primeira se expressa sob a forma da lei e diz respei­to ao semelhante, à generalidade, a segunda é contrária à lei. É nesse sentido que Kierkegaard afirma que é preciso entender a repetição "no sentido grego", isto é, come algo que diz respeito a uma singularidade, singularidade esta que afirma a eter­nidade mas não a permanência. Não se trata de afirmar uma eterna repetição do "mesmo", mas de mostrar que o eterno retorno de que nos falam os gregos aponta para o que podemos chamar de repetição diferencial. Os acontecimentos, quando re­petidos, já não são os mesmos. A própria repetição de uma palavra não traz com ela a repetição do sentido. 

É movido por esse sentimento de que o tempo impõe ao eterno retorno uma marca renovadora, que Constantino/ Kierkegaard empreende a tentativa de reviver todo o encanto de uma noite de estréia num teatro em Berlim, e a experiência fracassa. O fracasso ocorre porque o personagem de Constantino Constantius empreende sua tentativa de uma maneira excessivamente objetiva. Não se trata, evidentemente, de proceder a uma reprodução pura e simples da experiência anterior, até mesmo porque isto seria impossível, nem de retomá-la desde fora, da exterioridade, mas ao contrário, trata-se. de um exercício de liberdade. 

O que Kierkegaard distingue aqui é a repetição natural,que se confunde com a lei, e a repetição como liberdade, como potência de interioridade, como subjetividade. O alvo da crítica de Kierkegaard, nesse momento, é Kant. Sabemos que uma das questões kantianas, sobretudo na Crítica do juízo, é a de encontrar o fundamento da unidade entre d domínio da natureza e o da liberdade, assim como a passagem de um a outro. Kierkegaard não admite que essa passagem possa ser feita pelo conhecimen­to, e aponta a repetição como uma possibilidade, contanto que ela não seja confundida com reminiscência.

Em Différence et répétition, 4 Deleuze aponta quatro ca­racterísticas da repetição em Kierkegaard, que são ao mesmo tempo pontos de coincidência com a concepção de Nietzsche: 1) A repetição implica algo novo, está vinculada, para Kierkegaard, a uma seleção e colocada como objeto supremo da liberdade e da vontade. Repetir não é contemplar nem lembrar, mas atuar, "trata-se de fazer da repetição como tal uma novidade, quer dizer, uma liberdade e uma tarefa da liberdade".5 Essa opo­sição entre o recordar e o atuar, vamos encontrá-la também em Freud referida à questão da repetição. Para Freud, a repeti­ção substitui a recordação, e se ela num primeiro momento é tomada sob um aspecto puramente negativo (como resistência), num segundo momento ela é considerada como o fundamento da transferência e produtora de novidade. 2) A repetição se opõe às leis da natureza; ela diz respeito ao que há de mais in­terior na vontade e não às mudanças e igualdades que se dão em conformidade com as leis da natureza. Sob este aspecto, Kierkegaard condena tanto a repetição epicuréia como a estóica.3)A repetição se opõe à lei moral; é obra do solitário, é o logos dó "pensador privado". Este último é tomado por Kierkegaard como o oposto do professor público, cujo discurso conceitual torna-o "doutor da lei')"' 4) A repetição se opõe às generalidades do hábito assim como às particularidades da reminiscência. Pela repetição, o esquecimento transforma-se numa potência positiva, e o inconsciente se converte em um inconsciente su­perior positivo." 

Vimos acima que podemos distinguir duas formas de repe­tição: uma repetição-reprodução, repetição do "mesmo", tipo de repetição que Kierkegaard chamava de natural e que se con­tunde com a lei; e uma repetição diferencial, produtora do novo e de diferenças. Nietzsche foi o grande filósofo da repetição di­ferencial, o que faz dele um pensador trágico por excelência. O que se entende por "trágico" aqui é a afirmação do acaso, repe­tição diferencial de uma afirmação que é - um puro devir. Não há trágico naquilo que é absolutamente novo, o tr áqico implica repetição. Também o acaso puro não é trágico, ele é a afirmação primeira, o devir, o puro acontecimento. Este, como diz C. Hosset, pode até ser catastrófico, mas nada tem de trágico, na medida em que o trágico não se define pela dor e pela tristeza, mas pela afirmação do acaso. 7 O trágico é a afirmação da afirmação, -ele não é propriamente da ordem do acontecimento, mas da afirmação do acontecimento. A primeira afirmação é o devir (acaso); a segunda afirmação, que afirma a primeira, afir­ma o ser do devir (necessidade). Esta repetição é, no entanto, re­petição diferencial, não se trata de uma cópia do primeiro acon­tecimento, mas de uma repetição produtora de diferenças. O que é preciso acrescentar ao acontecimento (puro acaso) para que ele· se constitua como tráqico é o logos - a palavra ou a in­terioridade. Essa interioridade não deve ser entendida como in­teriorização da exterioridade, não se trata da interiorização da ordem e da lei. A repetição trágica não é uma negação do acaso, mas a sua própria afirmação constituindo-se como necessidade. 

Essa concepção da repetição, Nietzsche vai buscar em He­ráclito, o único dentre os pré-socráticos que ele considerava co­mo um pensador trágico, posto que afirmava o devir e o ser do devir. Essa dupla afirmação corresponde aos dois momentos do jogo de dados de que nos fala Nietzsche em Zaratustra: os dados lançados e os dados que caem. Os dados lançados são a afirmação do acaso; os dados que caem são a afirmação da necessidade. O acaso é identificado ao múltiplo, ao caos, enquanto que a necessidade (ananke) é a própria afirmação do acaso, sua própria combinação e não sua eliminação do acaso. Em Heráclito esses dois momentos correspondem àphysis e ao logos. A afirmação não afirma o ser; é ela própria o ser. Enquanto afirmação primeira ela é devir, mas ela mesma é objeto também de outra afirmação. Assim, tomada em toda a sua extensão, a afirmação é dupla, é preciso uma segunda afirmação para que a afirmação seja ela própria afirmada9 Acaso e necessidade não se opõem, combinam-se numa unidade complexa, sendo a necessidade uma reafirmação do próprio acaso. Enquanto tal, ela é uma repetição diferencial - este é o sentido do eterno retorno de Nietzsche. 

O trágico implica a repetição. Isto não faz, porém, com que o pensamento trágico opere sobre um "dado". O acaso não é o dado sobre o qual o trágico vai se constituir, já que o dado implica o ordenado, enquanto o acaso é anterior a qualquer or­dem. Poderíamos ainda supor que o primeiro momento do aca­so-trágico seria. marcado pelo inconsciente e que o segundo mo­mento assinalaria a passagem à consciência. Glement Rosset 10 nos mostra porém que o que o pensamento trágico se propõe fa­zer é passar o trágico não do inconsciente à consciência, mas do silêncio à palavra. O trágico é o que nos remete para além dos li­mites do discurso conceituai e o que silencia esse discurso. 

A concepção nietzschiana do trágico difere ainda da que nos oferece Schopenhauer, que o identifica com uma visão pes­simista do mundo. A repetição trágica de que nos fala Nietzsche nada tem a ver com o pessimismo, sendo mesmo sua negação, já que o pessimismo supõe uma natureza que aparece a ele como insatisfatória." O trágico de repetição, para Nietzsche, não pressupõe uma natureza - seja ela boa ou má. não se refere a uma culpa ou injustiça cósmica do tipo proclamado por Anaximandro, à qual temos que nos submeter numa expiação infindá­vel. Para o pensamento trágico, o homem não é culpado, não ca­rece de nada, não é definido pela falta: "O trágico se define pela cotidianidade e não pela exceção e pela catástrofe ( ... ). Não existem duas esferas de realidade - a trágica e a não trágica - mas dois modos de olhar (o trágico e o não trágico). 

Não se trata aqui de fazermos o inventário daquilo que se ropete de forma idêntica por oposição às repetições diferenciais, o nem mesmo de admitirmos que a repetição-reprodução perten­ce ao domínio da natureza, enquanto que a repetição diferencial pertence ao domínio do humano. Trata-se, acima de tudo, de deixar patente a diferença profunda que preside cada uma das concepções da repetição. · 

Foi partindo do fato de que a repetição-reprodução era possível dentro do domínio do humano, que J. B.- Watson, ao fundar o behaviorismo, descartou qualquer referência à interio­ridade do sujeito por considerá-la metodologicamente inútil. Pa­ra o behaviorisrno de Watson, "uma vez dado o estímulo, a psi­cologia deve predizer a resposta; ou inversamente, uma vez dada a resposta, a psicologia deve especificar a natureza do estimulo". Claro está que a partir desse ponto de vista, toda vez que só repetir o mesmo estímulo teremos a mesma resposta. No en­tanto, antes mesmo de findar o século XIX, esse associacionis­mo de tipo mecanicista já era alvo de severas críticas, sobretudo no que se referia à questão da repetição. Assim, William James recusava a possibilidade de um mesmo estado de consciência se repetir de maneira idêntica, pois cada sensação provoca uma mudança no cérebro e, portanto, para que um estado de consciência volte a se produzir uma segunda vez de forma idêntica, te­ria que se dar em um cérebro imutável. E somente de uma maneira artificial que essa repetição é possível, e mesmo assim é discutível. Os experimentos sobre o behavior são possíveis com animais dentro dos limites impostos pelas condições experimentais. São portanto abstratos. Transpor seus resultados para o domínio do humano é desconhecer que o homem fala, que pela linguagem ela opera uma metamorfose rio real, constituindo um mundo irredutível ao mundo animal. O mundo humano é o mundo do sentido, mundo que não é pensável fora da referência ao simbólico. Esta é a razão pela qual Jacques Lacan, em algum momento dos seus seminários, afirma que não há behavior hu­mano, mas ato humano, isto é, algo que se constitui como senti­do e que é indissociável da linguagem. Uma palavra, ou mesmo uma frase, quando repetida, não traz com ela a repetição do seu sentido. E a esse respeito, o conto de Borges "Pierre Menard, au­tor do Quixote" é exemplar.

Borges nos fala de Um certo Pierre Menard, que teria con­traído o misterioso dever de reconstruir literalmente o D. Qui­xote, de Cervantes. "Não queria compor outro Quixote - o que é fácil - mas o Quixote. Inútil acrescer que nunca visionou qualquer transcrição mecânica do original; não se propunha co­piá-lo. Sua admirável ambição era produzir páginas que coinci­dissem - palavra por palavra e linha por linha - com as de Mi­guel de Cervantes."16 Para tanto, o curioso romancista dedicou-se ao espanhol do século XVI 1, à fé católica, à guerra contra os mouros e ao esquecimento de tudo o que havia ocorrido entre os séculos XVII e XX. "Dedicou seus escrúpulos e vigílias a re­petir num idioma alheio um livro preexistente. Multiplicou os apontamentos; corrigiu tenazmente e rasgou milhares de páginas manuscritas." Resultou desse trabalho de anos e anos um texto rigorosamente igual ao de Cervantes, só que o de Pierre Menard "é quase infinitamente mais rico". E Borges propõe um cotejo entre os dois.Assim, no nono capítulo da primeira parte, Cervantes escreveu:


"( ... ) a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro." 


Pierre Menard, em compensação, escreveu: . 

"(. .. ) a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro." 


O primeiro texto, escreve Borges, redigido no século XVI 1 por Cervantes, "é um mero elogio retórico da história", em nada comparável ao de Menard. Este escreve que a história é mãe da verdade; "a idéia é espantosa". "Menard, contemporâneo de William James, não define a história como um indagação da rea­lidade, mas como sua origem. A verdade histórica, para ele, não é o que sucedeu; é o que pensamos que sucedeu. As cláusulas fi­nais exemplo e aviso do presente, advertência do futuro - são descaradamente pragmáticas." 

"Vívido também é o contraste dos estilos. O estilo arcai­zante de Menard - no fundo estrangeiro - padece de alguma afetação. Não assim o do precursor, que com desenfado maneja o espanhol corrente de sua época." Com ironia e corri humor, Borges prossegue o cotejo, que nunca seria excessivo reproduzir aqui, mas prefiro remeter o leitor ao próprio Borges. 

Imaginemos um poeta excêntrico e solitário, reescrevendo a Ilíada e a Odisséia, compondo verso por verso, escolhendo cui­dadosamente cada palavra para eliminá-las em seguida, por não estarem contidas no texto homérico. Repetição-reprodução que o gênio de Borges transforma em repetição diferencial. Será esse Pierre Menard nosso neurótico? O obsessivo de que nos fala Freud? Ou será ele a imagem do intelectual que persegue minu­ciosa e incansavelmente as indicações de pé de página do seu au­tor predileto - que Borges ironicamente chama de "precur­sor" -, procurando assim repetir seu percurso para reproduzir sua grande obra? Não é demais lembrar que "repetir" (do latim repetere) significa "tornar a dizer ou escrever", isto ê, algo que diz respeito à linguagem ou, num sentido mais amplo, aos atos humanos e não aos fenômenos naturais. 

Kierkegaard se dá conta, através de Constantino Constan­tius, que repetição não é reprodução, ou mesmo que a reproducão em se tratando de atos humanos é impossível. O que Cons­tantino não consegue saber é como a repetição se constitui. Sua tentativa, inevitavelmente malsucedida, era a de reproduzir a magia do acontecimento primeiro. O que lhe escapava era que a magia residia na própria repetição e não na reprodução mecânica de um acontecimento primeiro. A repetição implica o novo. 


A magia do conto de Borges não está na reprodução minuciosa do texto de Cervantes por parte de Pierre Menard, mas no novo que a narrativa de Borges faz surgir. E essa noção de que a repetição demanda o novo, o acaso, de que ela está voltada para o lúdico, é que vai se constituir num dos pontos centrais da análise empreendida por Lacan do conceito de repetição em Freud.

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