Acaso e repetição em psicanálise : uma introdução à teoria das pulsões / 1996 - ( Livro)
GARCÍA-ROZA, L. A. Acaso e repetição em psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1996. 128 p. ISBN 85-8506-154-5
p.27-38
A REPETIÇÃO EM HEGEL, KIERKEGAARD E NIETZSCHE
No começo era o caos - é o que nos diz Hesíodo na Teogonia. Sobre esse lugar indiferenciado, inabitado pelos deuses e pelos homens, anterior ao primeiro dia e à primeira palavra, cai o mais absoluto silêncio.
Rompido o silêncio do caos, o que se ouviu foi a palavra enigmática e lacunar do mito contando a história dos começos. Frente ao indeterminado, surge ô mito narrando a ordem primeira, ordem· esta concebida não como anterior ao caos, mas como um efeito dele, não. como fundamento necessário - aos acontecimentos ou como ,razão imanente ao mundo e às coisas, mas como resultante do acaso original. O mythos é a narrativa desses começos.
Estrangeiro pela palavra, o homem procurou ordenar o caos criando modelos para os acontecimentos presentes e futuros. É a partir desses acontecimentos primeiros que o homem grego vai forjar o conceito de natureza. Os feitos dos deuses e dos heróis não são determinados a priori, não obedecem a nenhuma ordem preestabelecida, não são a manifestação de nenhuma lei. Os deuses e os heróis não atualizam uma natureza, eles produzem-na a partir do caos original. Esses acontecimentos primordiais, uma vez produzidos, transformam-se em modelos pura a conduta dos homens. O homem das culturas arcaicas e primitivas repete esse modelo, sendo que é através dessa repetição que os fatos do cotidiano ganham sentido e realidade. Os acontecimentos do mundo não possuíam realidade em si mesmos, mas apenas na medida em que repetiam acontecimentos pretéritos. Ora, como todo acontecimento original caracterizava-se0 por ser um ato de criação por parte de um deus ou de um herói, a conduta exemplar era aquela que repetia indefinidamente a criação original. Temos, assim, acontecimentos sagrados e acontecimentos profanos, os primeiros repetindo um modelo original, e os segundos sendo estranhos a esse modelo, Os atos exemplares são, portanto, a - históricos, cabendo a historicidade apenas aos atos profanos. O mundo, no que possui de verdadeiro (ou de sagrado), é uma repetição. O que não é repetição permanece imerso no caos, carecendo de sentido e de realidade.
Assim, desde a mais remota antigüidade, a repetição é uma questão central para o homem. Desde o mito, passando pelo "eterno retorno" de Heráclito até Nietzsche, o terna da repetição atravessa a história do pensamento ocidental. Ou ando ele ressurge na obra de Freud - no início, timidamente, até 'transformar-se em tema central de Além do princípio de prazer - o faz com o peso dessa história, e o Édipo é sua marca registrada.
Dentre os autores que tratam da questão da repetição, e que fazem parte do mesmo solo do saber no interior do qual a psicanálise fez sua emergência, Hegel, Kierkegaard e Nietzsche transformaram-se em referenciais privilegiados pelos comentadores de Freud, apesar de a influência direta que os dois primeiros possam ter tido sobre ele ser quase nula. Nós porém não podemos ignorá-los. Se há algo que podemos considerar como sendo comum a Hegel, Kierkegaard, Nietzsche e Freud, é, em primeiro lugar, a importância que eles conferem à repetição, e, em segundo lugar, o fato de que para eles repetição não é reminiscência.
A aproximação entre Hegel e Freud através do conceito de repetição já foi feita há trinta anos por Jean Hyppolite, numa conferência pronunciada na Sociedade Francesa de Psicanálise.' Hyppolite propõe aproximar a Fenomenologia do Espírito de Hegel e A interpretação de sonhos de Freud através da noção de retrospecção, noção esta que se encontra também na base da leitura que Édipo faz de sua própria história, e que encerra o fundamental da prática psicanalítica .
O fio condutor da releitura que. Hyppolite faz de Fenomenologia é a noção de verdade entendida como desvelamento, que se efetua pela intersubjetividade ou, na terminologia hegeliana, pela intercomunicação de duas autoconsciências humanas. Segundo Hegel, essa comunicação intersubjetiva só pode ser feita pela linguagem, única mediação possível entre autoconsciências, isto é, único meio dessas autoconsciências saírem de suas respectivas certezas subjetivas e constituírem uma verdade objetiva. Mas como nos diz Hegel, a verdade nunca é um dado, mas o resultado de um processo que ao mesmo tempo a produz e a revela. Esse desvelamento implica, porém, uma releitura - nurn primeiro momento, o fenômeno é considerado enquanto vivido, enquanto experiência do sujeito (certeza subjetiva); num segundo momento, o da releitura, ele é incluído na .totalidade do Espírito (Geist) que revela a sua verdade.
O que Hvppolite propõe é uma analogia entre o percurso realizado pela consciência, desde o seu momento de inconsciência-de-si até a autoconsciência, e o caminho percorrido por Édipo em direção à sua verdade de parricida e incestuoso, Essa experiência, que é descrita na Fenomenologia do Espírito de Hegel, é também aquela que realiza o paciente na prática clínica psicanalítica. É importante ressaltar que tanto em Hegel como em Freud, esse percurso se constitui com a experiência que o sujeito faz de si mesmo e não como algo que lhe possa ser acrescentado de fora. Da mesma forma como Edipo não se reconheceria parricida e incestuoso se essa verdade lhe fosse dita logo após ter assumido o trono de Tebas e ter-se casado com Jocasta, também o paciente psicanalítico não reconheceria como sua a história que lhe fosse comunicada prematuramente pelo psicanalisa. O desconhecimento de Édipo quanto à sua verdade assim como o desconhecimento do paciente quanto ao significado do seu sintoma são da mesma natureza que o desconhecimento com que é marcada a consciência ingênua de que Hegel nos fala na Fenomenologia do Espírito. A certeza (subjetiva) que caracteriza a consciência somente será substituída pela verdade (objetiva) ao final do processo que revelará, retrospectivamente, ocaráter ocultador do momento inicial. Não há outro caminho para a verdade senão aquele que se constitui pela experiência que a consciência empreende dela mesma. É portanto a Totalidade que confere verdade plena ao fenômeno; sem ela, ele permanece incompleto enquanto sentido. Trata-se de uma concepção,essencialmente grega da realidade.
A visão kierkeqaardiana da repetição difere da de Hegel na medida em que não admite a totalização (o mesmo podemos dizer da concepção freudiana). Está mais próxima da visão cristã do. que da visão grega, na medida em que a visão cristã admite que a · repetição pela fé apresenta a possibilidade de uma renovação.
Em Kierkegaard, o tema da repetição não está presente apenas no livro que leva este título, mas desenvolve-se na parte de sua obra que ele designa como 'estética". Assim, por exemplo, temos não apenas a repetição rnal sucedida de Constantino Constantius em A repetição, como também a repetição bem-sucedida de Johannes de Silentio em Temor e tremor. 2 Já no prefácio do primeiro, Kierkegaard nos adverte que repetição não é reminiscência; não se trata também da repetição natural, identificada com a lei, nada que se assemelhe ao movimento dos astros ou ao ciclo das estações. O conceito surge da confrontação da subjetividade com a realidade, e é colocada sob a forma de uma pergunta inicial: "Uma coisa, ao ser repetida, ganha ou perde?"
Uma primeira resposta poderia ser a de que haveria indiscutivelmente uma perda, posto que o ganho só poderia advir de uma fuga à repetição, tornando possível a vivência do instante. Este não é, porém, o ponto de vista de Constantino Constantius, para quem a existência não é o puro acaso do devir, mas repetição. Repetição, diz ele, tomada "no sentido grego" do termo. É no conceito grego de Kinesis (movimento, mudança). particularmente tal como foi pensado por Aristóteles, que Kierkegaard vai buscar apoio para empreender sua crítica à concepção hegeliana de mudança. No entanto, apesar da evidente crítica de Constantino Constantius a Hegel, e do tão declarado anti-hegelianismo de Kierkegaard, não seria inteiramente descabido afirmarmos que o pensador' dinamarquês retoma a noção hegeliana de "releitura" conferindo-lhe novo sentido. Claro está que isto não implica estabelecermos uma filiação de Kierkegaard a Hegel (pelo menos num sentido linear) ou em aproximarmos o conteúdo de ambos os pensamentos; o que está sendo assinalado aqui, como presente a ambos, é o conceito de repetição.
Ao retomar a noção de repetição, Kierkegaard vai distinguir o que ele chama de repetição numérica (pura reprodução de algo) da repetição propriamente dita. Enquanto a primeira é a repetição que encontramos na natureza, uma forma de manutenção do mesmo, a segunda é produtora de diferenças; enquanto a primeira se expressa sob a forma da lei e diz respeito ao semelhante, à generalidade, a segunda é contrária à lei. É nesse sentido que Kierkegaard afirma que é preciso entender a repetição "no sentido grego", isto é, come algo que diz respeito a uma singularidade, singularidade esta que afirma a eternidade mas não a permanência. Não se trata de afirmar uma eterna repetição do "mesmo", mas de mostrar que o eterno retorno de que nos falam os gregos aponta para o que podemos chamar de repetição diferencial. Os acontecimentos, quando repetidos, já não são os mesmos. A própria repetição de uma palavra não traz com ela a repetição do sentido.
É movido por esse sentimento de que o tempo impõe ao eterno retorno uma marca renovadora, que Constantino/ Kierkegaard empreende a tentativa de reviver todo o encanto de uma noite de estréia num teatro em Berlim, e a experiência fracassa. O fracasso ocorre porque o personagem de Constantino Constantius empreende sua tentativa de uma maneira excessivamente objetiva. Não se trata, evidentemente, de proceder a uma reprodução pura e simples da experiência anterior, até mesmo porque isto seria impossível, nem de retomá-la desde fora, da exterioridade, mas ao contrário, trata-se. de um exercício de liberdade.
O que Kierkegaard distingue aqui é a repetição natural,que se confunde com a lei, e a repetição como liberdade, como potência de interioridade, como subjetividade. O alvo da crítica de Kierkegaard, nesse momento, é Kant. Sabemos que uma das questões kantianas, sobretudo na Crítica do juízo, é a de encontrar o fundamento da unidade entre d domínio da natureza e o da liberdade, assim como a passagem de um a outro. Kierkegaard não admite que essa passagem possa ser feita pelo conhecimento, e aponta a repetição como uma possibilidade, contanto que ela não seja confundida com reminiscência.
Em Différence et répétition, 4 Deleuze aponta quatro características da repetição em Kierkegaard, que são ao mesmo tempo pontos de coincidência com a concepção de Nietzsche: 1) A repetição implica algo novo, está vinculada, para Kierkegaard, a uma seleção e colocada como objeto supremo da liberdade e da vontade. Repetir não é contemplar nem lembrar, mas atuar, "trata-se de fazer da repetição como tal uma novidade, quer dizer, uma liberdade e uma tarefa da liberdade".5 Essa oposição entre o recordar e o atuar, vamos encontrá-la também em Freud referida à questão da repetição. Para Freud, a repetição substitui a recordação, e se ela num primeiro momento é tomada sob um aspecto puramente negativo (como resistência), num segundo momento ela é considerada como o fundamento da transferência e produtora de novidade. 2) A repetição se opõe às leis da natureza; ela diz respeito ao que há de mais interior na vontade e não às mudanças e igualdades que se dão em conformidade com as leis da natureza. Sob este aspecto, Kierkegaard condena tanto a repetição epicuréia como a estóica.3)A repetição se opõe à lei moral; é obra do solitário, é o logos dó "pensador privado". Este último é tomado por Kierkegaard como o oposto do professor público, cujo discurso conceitual torna-o "doutor da lei')"' 4) A repetição se opõe às generalidades do hábito assim como às particularidades da reminiscência. Pela repetição, o esquecimento transforma-se numa potência positiva, e o inconsciente se converte em um inconsciente superior positivo."
Vimos acima que podemos distinguir duas formas de repetição: uma repetição-reprodução, repetição do "mesmo", tipo de repetição que Kierkegaard chamava de natural e que se contunde com a lei; e uma repetição diferencial, produtora do novo e de diferenças. Nietzsche foi o grande filósofo da repetição diferencial, o que faz dele um pensador trágico por excelência. O que se entende por "trágico" aqui é a afirmação do acaso, repetição diferencial de uma afirmação que é - um puro devir. Não há trágico naquilo que é absolutamente novo, o tr áqico implica repetição. Também o acaso puro não é trágico, ele é a afirmação primeira, o devir, o puro acontecimento. Este, como diz C. Hosset, pode até ser catastrófico, mas nada tem de trágico, na medida em que o trágico não se define pela dor e pela tristeza, mas pela afirmação do acaso. 7 O trágico é a afirmação da afirmação, -ele não é propriamente da ordem do acontecimento, mas da afirmação do acontecimento. A primeira afirmação é o devir (acaso); a segunda afirmação, que afirma a primeira, afirma o ser do devir (necessidade). Esta repetição é, no entanto, repetição diferencial, não se trata de uma cópia do primeiro acontecimento, mas de uma repetição produtora de diferenças. O que é preciso acrescentar ao acontecimento (puro acaso) para que ele· se constitua como tráqico é o logos - a palavra ou a interioridade. Essa interioridade não deve ser entendida como interiorização da exterioridade, não se trata da interiorização da ordem e da lei. A repetição trágica não é uma negação do acaso, mas a sua própria afirmação constituindo-se como necessidade.
Essa concepção da repetição, Nietzsche vai buscar em Heráclito, o único dentre os pré-socráticos que ele considerava como um pensador trágico, posto que afirmava o devir e o ser do devir. Essa dupla afirmação corresponde aos dois momentos do jogo de dados de que nos fala Nietzsche em Zaratustra: os dados lançados e os dados que caem. Os dados lançados são a afirmação do acaso; os dados que caem são a afirmação da necessidade. O acaso é identificado ao múltiplo, ao caos, enquanto que a necessidade (ananke) é a própria afirmação do acaso, sua própria combinação e não sua eliminação do acaso. Em Heráclito esses dois momentos correspondem àphysis e ao logos. A afirmação não afirma o ser; é ela própria o ser. Enquanto afirmação primeira ela é devir, mas ela mesma é objeto também de outra afirmação. Assim, tomada em toda a sua extensão, a afirmação é dupla, é preciso uma segunda afirmação para que a afirmação seja ela própria afirmada9 Acaso e necessidade não se opõem, combinam-se numa unidade complexa, sendo a necessidade uma reafirmação do próprio acaso. Enquanto tal, ela é uma repetição diferencial - este é o sentido do eterno retorno de Nietzsche.
O trágico implica a repetição. Isto não faz, porém, com que o pensamento trágico opere sobre um "dado". O acaso não é o dado sobre o qual o trágico vai se constituir, já que o dado implica o ordenado, enquanto o acaso é anterior a qualquer ordem. Poderíamos ainda supor que o primeiro momento do acaso-trágico seria. marcado pelo inconsciente e que o segundo momento assinalaria a passagem à consciência. Glement Rosset 10 nos mostra porém que o que o pensamento trágico se propõe fazer é passar o trágico não do inconsciente à consciência, mas do silêncio à palavra. O trágico é o que nos remete para além dos limites do discurso conceituai e o que silencia esse discurso.
A concepção nietzschiana do trágico difere ainda da que nos oferece Schopenhauer, que o identifica com uma visão pessimista do mundo. A repetição trágica de que nos fala Nietzsche nada tem a ver com o pessimismo, sendo mesmo sua negação, já que o pessimismo supõe uma natureza que aparece a ele como insatisfatória." O trágico de repetição, para Nietzsche, não pressupõe uma natureza - seja ela boa ou má. não se refere a uma culpa ou injustiça cósmica do tipo proclamado por Anaximandro, à qual temos que nos submeter numa expiação infindável. Para o pensamento trágico, o homem não é culpado, não carece de nada, não é definido pela falta: "O trágico se define pela cotidianidade e não pela exceção e pela catástrofe ( ... ). Não existem duas esferas de realidade - a trágica e a não trágica - mas dois modos de olhar (o trágico e o não trágico).
Não se trata aqui de fazermos o inventário daquilo que se ropete de forma idêntica por oposição às repetições diferenciais, o nem mesmo de admitirmos que a repetição-reprodução pertence ao domínio da natureza, enquanto que a repetição diferencial pertence ao domínio do humano. Trata-se, acima de tudo, de deixar patente a diferença profunda que preside cada uma das concepções da repetição. ·
Foi partindo do fato de que a repetição-reprodução era possível dentro do domínio do humano, que J. B.- Watson, ao fundar o behaviorismo, descartou qualquer referência à interioridade do sujeito por considerá-la metodologicamente inútil. Para o behaviorisrno de Watson, "uma vez dado o estímulo, a psicologia deve predizer a resposta; ou inversamente, uma vez dada a resposta, a psicologia deve especificar a natureza do estimulo". Claro está que a partir desse ponto de vista, toda vez que só repetir o mesmo estímulo teremos a mesma resposta. No entanto, antes mesmo de findar o século XIX, esse associacionismo de tipo mecanicista já era alvo de severas críticas, sobretudo no que se referia à questão da repetição. Assim, William James recusava a possibilidade de um mesmo estado de consciência se repetir de maneira idêntica, pois cada sensação provoca uma mudança no cérebro e, portanto, para que um estado de consciência volte a se produzir uma segunda vez de forma idêntica, teria que se dar em um cérebro imutável. E somente de uma maneira artificial que essa repetição é possível, e mesmo assim é discutível. Os experimentos sobre o behavior são possíveis com animais dentro dos limites impostos pelas condições experimentais. São portanto abstratos. Transpor seus resultados para o domínio do humano é desconhecer que o homem fala, que pela linguagem ela opera uma metamorfose rio real, constituindo um mundo irredutível ao mundo animal. O mundo humano é o mundo do sentido, mundo que não é pensável fora da referência ao simbólico. Esta é a razão pela qual Jacques Lacan, em algum momento dos seus seminários, afirma que não há behavior humano, mas ato humano, isto é, algo que se constitui como sentido e que é indissociável da linguagem. Uma palavra, ou mesmo uma frase, quando repetida, não traz com ela a repetição do seu sentido. E a esse respeito, o conto de Borges "Pierre Menard, autor do Quixote" é exemplar.
Borges nos fala de Um certo Pierre Menard, que teria contraído o misterioso dever de reconstruir literalmente o D. Quixote, de Cervantes. "Não queria compor outro Quixote - o que é fácil - mas o Quixote. Inútil acrescer que nunca visionou qualquer transcrição mecânica do original; não se propunha copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir páginas que coincidissem - palavra por palavra e linha por linha - com as de Miguel de Cervantes."16 Para tanto, o curioso romancista dedicou-se ao espanhol do século XVI 1, à fé católica, à guerra contra os mouros e ao esquecimento de tudo o que havia ocorrido entre os séculos XVII e XX. "Dedicou seus escrúpulos e vigílias a repetir num idioma alheio um livro preexistente. Multiplicou os apontamentos; corrigiu tenazmente e rasgou milhares de páginas manuscritas." Resultou desse trabalho de anos e anos um texto rigorosamente igual ao de Cervantes, só que o de Pierre Menard "é quase infinitamente mais rico". E Borges propõe um cotejo entre os dois.Assim, no nono capítulo da primeira parte, Cervantes escreveu:
"( ... ) a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro."
Pierre Menard, em compensação, escreveu: .
"(. .. ) a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro."
O primeiro texto, escreve Borges, redigido no século XVI 1 por Cervantes, "é um mero elogio retórico da história", em nada comparável ao de Menard. Este escreve que a história é mãe da verdade; "a idéia é espantosa". "Menard, contemporâneo de William James, não define a história como um indagação da realidade, mas como sua origem. A verdade histórica, para ele, não é o que sucedeu; é o que pensamos que sucedeu. As cláusulas finais exemplo e aviso do presente, advertência do futuro - são descaradamente pragmáticas."
"Vívido também é o contraste dos estilos. O estilo arcaizante de Menard - no fundo estrangeiro - padece de alguma afetação. Não assim o do precursor, que com desenfado maneja o espanhol corrente de sua época." Com ironia e corri humor, Borges prossegue o cotejo, que nunca seria excessivo reproduzir aqui, mas prefiro remeter o leitor ao próprio Borges.
Imaginemos um poeta excêntrico e solitário, reescrevendo a Ilíada e a Odisséia, compondo verso por verso, escolhendo cuidadosamente cada palavra para eliminá-las em seguida, por não estarem contidas no texto homérico. Repetição-reprodução que o gênio de Borges transforma em repetição diferencial. Será esse Pierre Menard nosso neurótico? O obsessivo de que nos fala Freud? Ou será ele a imagem do intelectual que persegue minuciosa e incansavelmente as indicações de pé de página do seu autor predileto - que Borges ironicamente chama de "precursor" -, procurando assim repetir seu percurso para reproduzir sua grande obra? Não é demais lembrar que "repetir" (do latim repetere) significa "tornar a dizer ou escrever", isto ê, algo que diz respeito à linguagem ou, num sentido mais amplo, aos atos humanos e não aos fenômenos naturais.
Kierkegaard se dá conta, através de Constantino Constantius, que repetição não é reprodução, ou mesmo que a reproducão em se tratando de atos humanos é impossível. O que Constantino não consegue saber é como a repetição se constitui. Sua tentativa, inevitavelmente malsucedida, era a de reproduzir a magia do acontecimento primeiro. O que lhe escapava era que a magia residia na própria repetição e não na reprodução mecânica de um acontecimento primeiro. A repetição implica o novo.
A magia do conto de Borges não está na reprodução minuciosa do texto de Cervantes por parte de Pierre Menard, mas no novo que a narrativa de Borges faz surgir. E essa noção de que a repetição demanda o novo, o acaso, de que ela está voltada para o lúdico, é que vai se constituir num dos pontos centrais da análise empreendida por Lacan do conceito de repetição em Freud.
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