segunda-feira, 8 de agosto de 2016

KIERKEGAARD E A REPETIÇÃO - segundo Prof.Dr.Rogério Miranda de Almeida



KIERKEGAARD E A REPETIÇÃO


Não poderíamos deixar de incluir no itinerário que até agora pontilhamos a questão de como a repetição ou, mais exatamen­te, a retomada se apresenta na concepção do pensador solitário de Copenhague. Isto não significa, porém, que deveremos per­correr todas as obras de Kierkegaard - como aliás não o fize­mos com relação a Nietzsche e a Freud - para poder constatar como a repetição, através das vicissitudes da escrita, vale dizer, das suas rupturas, retomadas e reinterpretações, nelas se expri­me e delas se afirma enquanto impulsão fundamental do ser humano. Neste sentido, qualquer texto, enquanto espaço pelo qual se desenrolam a tensão e, por conseguinte, a satisfação e a insatisfação do desejo, já aponta para aquela dinâmica que na teoria de Freud se designa pela expressão compulsão à repetição e em Nietzsche se manifesta pela doutrina ou teoria do eterno re­torno. Assim, o nosso escopo visa tão-somente mostrar, a partir . do livro intitulado A repetição, como esta tendência, embora se­guindo uma perspectiva e um movimento próprios, se insere também no universo kierkegaardiano da interpretação, da ava­liação, da criação e da pluralidade de leituras que não cessam de se escrever e se re-escrever, mas na diferença. A nossa intenção, portanto, não é apresentar um "estudo" desse livro em particular nem demonstrar como o fenômeno da compulsão à repeti­ção se desdobra, nas suas modalidades múltiplas, através do corpus kierkegaardiano; esta tarefa requereria, de fato, uma obra à parte. E, mesmo se se considerasse a possibilidade de uma obra à parte, esta não deveria pretender exaurir todas as impli­cações que um tal fenômeno encerra, pois seria uma óbvia con­tradição querer lançar a última palavra sobre uma tendência cuja satisfação está, paradoxalmente, nas suas próprias insaciabili­dade e tensão infinitas. 

A repetição será, pois, não o nosso texto de referência prin­cipal, mas o pretexto que nos permitirá tecer algumas reflexões em torno da volta do mesmo em Kierkegaard. Esta é a razão pela qual não hesitaremos em recorrer a um ou outro texto do mes­mo autor, e mesmo de outros autores, que, direta ou indireta­mente, têm relação com a problemática do retorno. De modo particular, esperamos enfatizar de que maneira a compulsão à repetição, a angústia, a criação e o gozo que as acompanha se revelam como expressões de uma questão mais profunda ain­da, qual seja, a questão do sujeito e, em última instância, a do próprio desejo. 

Na verdade, embora as traduções existentes empreguem freqüentemente a palavra repetição para verter o título da obra homônima, a tradutora da mais recente versão francesa, Nelly Viallaneix, aduz razões etimológicas convincentes para funda­mentar a sua preferência pelo vocábulo retomada (reprise) em vez de repetição. Uma tradução mais antiga já havia surgido na Itália, em que o título empregado era igualmente A retomada (La ripresa, Milão, 1954). Quanto à versão francesa, a tradutora afirma, na "Advertência", que o termo gjentagelse é formado pelo prefixo gjen, que quer dizer "de novo", e por um substantivo forjado a partir do verbo at tage, que significa "tomar". O senti­do literal de gjentagelse é, pois, re-tomada', Aliás, se nos referirmos aos aspectos autobiográficos dessa e de outras obras - que são inegáveis, e que, ao se ocultarem por trás dos pseudô­nimos que Kierkegaard criou, manifestam ao mesmo tempo a ética e o método fundamental do seu autor - , veremos que o vocábulo se aplica de modo especial a esse texto, nó qual uma possível re-tomada das relações de Kierkegaard com a ex-noiva, Regina Olsen, é expressa na tentativa ideal de o jovem enamo­rado - principal personagem do livro - reatar com a sua ama­da. De resto, uma análise que desenvolve o autor na primeira parte do livro sobre a retomada de uma farsa no teatro de Ber­lim vem igualmente atestar a oportunidade de se utilizar este termo em vez de aquele outro, "repetição". É que, na linguagem do teatro, as repetições - que em português se designam pelo nome de "ensaios", nos quais se recita o mesmo texto para reforçar o mecanismo da memória - diferem essencialmente da retomada (,gjenoptagelse) da peça, que mostra, ao contrário, uma recriação ou representação renovada do mesmo texto e, no caso da música, uma execução re-atualizada ou re-vivida da peça musical. Assim, a "repetição" seria a semelhança na repro­dução da palavra ou do gesto, a esclerose do hábito, "o mesmo no mesmo", enquanto a "retomada" evoca, sobretudo, um se­gundo começo, uma nova vida e, por conseguinte, uma nova criação e uma "reconciliação", pois a "reconciliação" - afirma Kierkegaard - é a retomada no seu sentido mais eminente e mais radical. É sempre o mesmo "eu" que retorna, mas enquan­to "outro", um "outro" que se renova, se refaz e se modela a cada instante, a cada final e a cada recomeço. 

Recordemo-nos do que dissemos acima, no início do Capí­tulo II, ao analisarmos a compulsão a repetir o novo nos textos de Nietzsche. Lá, igualmente, há uma insistência sobre a impos­sibilidade de qµe duas coisas venham a repetir-se de modo absolu­tamente idêntico. Mas enquanto Kierkegaard fala de repetição (repetition) para designar a degeneração da retomada num gesto, numa palavra ou numa atitude puramente mecânica, Nietzsche, que, nos textos analisados, se move num plano cosmológico e biológico, refere-se - embora empregando o substantivo Wieder­holung e o verbo sich wiederholen - à impossibilidade de uma repro­dução do idêntico ou do etwas Gleiches entre os elementos constitutivos do mundo fisico-biológico. Uma tal reprodução seria, antes de tudo, impossível de demonstrar, pois para que duas coisas fossem absolutamente idênticas teriam também de ter tido uma gênese absoluta e necessariamente idêntica. O que significa que se teria de remontar até a mais remota eternidade, tarefa não somente impossível, mas, para sermos honestos, inútil. Que se trate, portanto, da retomada em Kierkegaard ou da repetição em Nietzsche e em Freud, o que finalmente está em jogo é a questão do sujeito ou do desejo na sua eterna satisfação­ insatisfação, no seu eterno superar-se e começar de novo. 

É certo que, fora da Dinamarca, as idéias de Kierkegaard só começaram a tornar-se conhecidas na Europa a partir do século XX. E mesmo na primeira década do século XX não existiam ain­da senão traduções esporádicas, feitas por indivíduos isolados. É o que atesta o teólogo luterano Paul Tillich ao descrever, com entu­siasmo, os primeiros contatos que ele e outros estudantes de teo­logia da Universidade de Halle travaram, nos anos 1905-1907, com o até então desconhecido autor de Temor e tremor', Dele também Nietzsche ouvira falar, pelo amigo George Brandes, somente · em 1888, ou seja, no último ano da sua vida produtiva, e quando era tarde demais para adquirir as obras do dinamarquês 4. Em Freud não se encontra menção alguma do nome de Kierkegaard. Mas a questão principal não reside em indagar se Nietzsche e Freud te­riam ou não tomado conhecimento da obra do inventor do "salto da fé". 

O que nos interessa em primeiro lugar neste estudo é pôr em relevo como a experiência da repetição se apresenta neste três pensadores e, mais exatamente, como este fenômeno aponta para uma tendência mais profunda, mais elementar e originária, que ê a compulsão à repetição, ela mesma expressão da luta que, sem cessar, travam entre si as pulsões de vida e de morte e da qual derivam tanto prazer como desprazer, tanto alegria como dor, tanto volúpia como sofrimento, tanto construção como destruição e, em suma, tanto angústia como gozo. Mas como a repetição ou, mais precisamente, a retomada se desenvolve em Kierkegaard? Em que aspectos ela difere do eterno retorno nietzschiano e da compulsão à repetição elaborada por Freud? 

Reminiscência e retomada 

Com efeito, Kierkegaard, por intermédio do seu porta-voz, Constantin Constantius, inicia o "pequeno livro" com a questão da concepção do movimento entre os gregos e, mais exata­mente, da negação da sua realidade por parte dos filósofo, eleáticos. Essa evocação, já na abertura de A retomada, é tanto mais oportuna quando se sabe que não se pode pensar o movi­menta sem o tempo, e vice-versa. Já nos pré-socráticos o tempo era considerado como a ordem mensurável do movimento. Assim, segundo Aristóteles, os pitagóricos o definiam como "a esfera que tudo abraça"5 No Timeu (37 d), Platão dirá que o tempo é "a imagem móvel da eternidade". Já o próprio Aristóteles, partindo de um plano evidentemente empírico, chega à seguinte conclusão: "Quando, ao contrário, percebemos o anterior e o posterior, dizemos então que existe o tempo, poís eis o que entendemos por tempo: o número do movimento segundo o anterior e o posterior'". 

Os eleatas, todavia, negavam a realidade do movimento e, segundo a tradição, a que também Kierkegaard se refere, Dióge­nes contentou-se em silenciosamente dar alguns passos para fren­te e para trás pensando assim haver suficientemente refutado os seus oponentes. Estamos na Atenas dos séculos VI e V antes da era cristã. Segundo o testemunho de Platão (Carta 7), o ambiente político do século V é marcado pelo ceticismo em que se enfren­tam megáricos, cínicos, cirenaicos e sofistas ao tentar resolver os impasses político-lingüísticos deixados pelos eleatas, que tinham Parmênides como chefe de fila. Ao destronar as velhas teogonias e cosmogonias que, fantasticamente, tentavam explicar as ori­gens dos deuses e do mundo, assim como as peripécias divinas que nele se tramavam, esses filósofos construíram no seu lugar uma ontologia que julgavam ser apta a resolver o problema do devir, da mudança e da multiplicidade. O resultado desse novo pensamento foi, por um lado, a rejeição do movimento e da pluralidade oriundos do engano dos nossos sentidos que - se­gundo os eleatas - captam tão-somente as contradições da aparência. 

Por outro lado, porém, eram salientados os conceitos de unidade e imutabilidade como as características essenciais do Ser ou, melhor, como os fundamentos únicos e últimos da lei que rege a realidade e cuja tradução é, precisamente, o logos ou o discurso racional", Num tal universo, em que o Ser é pensado como uno e imóvel, como o todo e o mesmo, sobra pouco ou nenhum espa­ço para a retomada. Para Kierkegaard esta se apresenta, historicamente, sob duas modalidades principais. Em primeiro lugar ela se exprimia, para os gregos, sob a forma da reminiscência na medida em que, como é o caso em Platão, todo conhecimento ou todo processo que emprega a ciência para atingir as essências inteligíveis não é senão um re-lembrar-se e, mais exatamente, um te-lembrar-se pelo diálogo. É o que se pode encontrar no Mênon, no qual Sócrates tenta mostrar ao seu interlocutor, Mênon, que se a virtude for um saber, ela poderá ser ensinada ou, o que vem a dar no mesmo, ela poderá ser objeto de reminiscência ou de anámnesis. Ora, mas enquanto a reminiscência se volta para o passado na tentativa de captar aquele "momento" ou elemento que, eternamente suspenso, viria a revelar-se como saber na sua abstração e inteligibilidade última, a retomada tal qual Kierke­gaard a entende é um movimento que, incessante e dinamica­mente, se desenvolve como abertura, potencialidade e possibili­dade de novas tarefas. Tanto a reminiscência como a retomada têm certamente o mesmo prefixo, mas ambas apontam para direções contrárias ou, para dizê-lo com Kierkegaard: retomada e reminiscência constituem um mesmo movimento, mas em direção oposta, pois aquilo de que se tem recordação já passou, é uma retomada para trás, enquanto a retomada propriamente dita é uma recordação voltada para frente. É abertura e recriação, ou re-novação do já vivido, do já experienciado e significado". Neste sentido - afirma o autor - a retomada é um conceito que marca decisivamente a nova filosofia, ou a filosofia moderna, que, segundo ele, considera o nosso comportamento e a nossa atitude fundamentais em face do mundo como uma constante retomada ou uma incessante tentativa para alcançar, conquistar e ultrapassar os diferentes graus ou estágios da vida. 

Leibniz e a retomada 

É importante lembrar que, ao falar da filosofia moderna, Kierkegaard está veladamente dirigindo um ataque contra He­gel, o qual não cessa de obsidiar o autor de Temor e tremor, pois ele aparece e reaparece, de maneira implícita ou explícita, em quase toda página da obra kierkegaardiana. Nós designamos este fenômeno, inspirados no nosso mestre Roland Sublon, sob a expressão: o paradoxo da exclusão interna. Com isto queremos significar que se supera o outro, se exclui o outro, se quebram as tábuas da lei ou, para falar psicanalíticamente, mata-se o pai, mas a partir de um mesmo movimento ou dentro do mesmo universo simbólico. Curiosamente, logo depois de referir-se à nova filosofia, Kierkegaard afirma, sem rodeios, que o único filósofo moderno em quem se encontra a intuição básica da retomada é G. W. Leibniz. Talvez o autor tenha em mente um texto da Teodicéia, parágrafo 360, em que, ao discorrer sobre a previdência de Deus, Leibniz faz a declaração seguinte: "Eis uma das regras do meu sistema da harmonia universal: o presente está prenhe do futuro e aquele que tudo vê, vê no que é aquilo que será. E mais ainda, provei conclusivamente que Deus vê em cada porção do universo todo o universo, e isso devido à perfei­ta conexão entre as coisas'v'', Esta afirmação está intimamente relacionada com a teoria leibniziana das mônadas. Mas o que é uma mônada? Ao tratar da substância nos Princípios de filosofia, ouMonadologi,a, Leibniz define a mónada, em grego monás, como sendo nada mais nada menos do que "uma substância simples que entra nos compostos - simples, isto é, sem partes"!'. As mônadas são, pois, as unidades mais elementares ou as subs­tâncias mais simples que compõem o universo. Elas se apresentam como "átomos espirituais" ou substâncias desprovidas de partes e de extensão, não-passíveis de desagregação, s:endo, por conseguinte, indivisíveis e eternas. Segundo Leibniz, só Deus pode criá-las ou destruí-las. Ademais, cada mônada é diversa uma da outra já que não se encontram na natureza dois seres perfeitamente idênticos. Elas se distinguem entre si pelas suas qualidades internas e pelas suas ações. Mas como isso ocorre, se toda diferença já pressupõe uma identidade ou, pelo menos, elementos comuns através dos quais se pode afirmar também a diferença? Todavia, Leibniz define as substâncias simples como "átomos espirituais", mundos autossuficientes, em s1i comple­tos e independentes um do outro. Sendo assim, corno justificar então a comunicação e a interconexão dos seres, as mudanças de estados, as diferenças, as ações recíprocas, em suma, a "har­monia universal"? 

Este fenômeno, ele o explica a partir da sua teoria da per­cepção e da appetitio, que significa "tendência para", e que não deve ser confundida com o conatus espinosiano. Com efeito, para Leibniz as atividades fundamentais das mônadas: são, além da appetitio, a percepção, que também se encontra nos animais e nas plantas, e a apercepção, que é própria somente do ser humano, na medida em que este reflete sobre as suas percep­ções ou delas tem consciência. Enquanto a percepção pode ser definida como a representação do composto, ou do q1ue é exter­no, pelo simples, a appetitio é a tendência, a força ou a impulsão que faz passar de uma percepção para outra. Assim, aw contrá­rio do conatus, que diz respeito ao esforço que exerce c:ada coisa para conservar-se no seu próprio ser, na appetitio se encontram, segundo Leibniz, os princípios responsáveis pelas mudanças e alterações que se desenvolvem através do universo''. Cada mônada possui um ponto de vista sobre o mundo e, por sua vez, reflete este mesmo mundo a partir de um determinado ângulo, mesmo quando as percepções são confusas ou não são totalmente claras. Elas se apresentam, em virtude da appetitio que opera a interconexão e relação entre as diversas percepções, como que um resumo, um compêndio, ou um "eterno e vivo espelho do universo". Essa concepção, em cujas dificuldades e aporias não pretendemos entrar - pois nos afastariam por demais do escopo principal destas reflexões - é, no entanto, rica de conseqüências, pelo que ela veio a influenciar muitas das teorias modernas relativas ao perspectivismo. Este se encontra expresso, por exemplo, no parágrafo 57 da Monadologia, no qual Leibniz afirma: "Assim como a mesma cidade, vista de diferentes direções, aparece completamente variada e, por assim dizer, multi­plicada perspectivamente, do mesmo modo acontece que, em virtude da infinita quantidade de substâncias simples, há como que tantos universos diferentes que, no entanto, são somente perspectivas sobre um único universo, o que corresponde aos diferentes pontos de vista de cada mónada?". 

Na verdade, a distinção entre sensação ou percepção e a autoconsciência enquanto movimento auto-reflexivo no homem já se encontra em Platão, nos estóicos e em Platino, e ela terá em Agostinho um amplo, sutil e original desenvolvimento". A ino­vação de Leibniz consiste em haver introduzido no seu sistema a teoria das mônadas, em havê-la elevado a um plano cósmico, extrapolando assim todos os limites do universo e chegando até ao seio do próprio Deus. Deus é, portanto, a unidade primitiva, a substância simples e originária a partir da qual todas as mônadas criadas ou derivadas são produzidas ou geradas como que por fulgurações contínuas". Daí podermos melhor entender o pará­grafo 360 da Teodicéia, acima citado, sobre a controvertida ques­tão da harmonia universal: "O presente está prenhe do futuro e aquele que tudo vê, vê no que é aquilo que será". Esta ideia devia ser especialmente estimada por Leibniz, pois ele a retomará, de maneira sintética, no parágrafo 22 da Monadologia: "E já que todo estado atual de uma substância simples é a consequência natural do seu estado anterior, o presente está prenhe do futuro?". As­sim, graças à perfeita conexão entre os seres, Deus contempla cm cada porção do universo o universo todo inteiro. E não só o universo na sua constituição e nos seus aspectos físicos, mas também no seu desenrolar temporal: o Criador possui simulta­neamente uma visão do passado, do presente e do futuro; ele pode tudo prever e tudo determinar, antecipando, desse modo, o que mudará e o que se repetirá. 

Não é difícil deduzir as implicações éticas que dessa con­cepção podem derivar. Contrariamente ao Deus do ocasiona­lismo, que pressupõe uma interferência contínua do Criador nos fenômenos intramundanos, o Deus de Leibniz se apresen­ta antes como um sábio arquiteto que, desde o início, harmoni­zou o conjunto das coisas criadas calculando o desenvolvimen­to de cada uma no seu devido tempo e espaço. De sorte que, no momento determinado em que as diferentes substâncias, atra­vés da appetitio e da percepção, se põem a agir umas sobre as outras, deverão necessariamente seguir-se as mudanças corres­pondentes àquelas ações. Esta doutrina, que simplificamos ao extremo ao tentar descrevê-la nos seus traços essenciais, Leib­niz a denomina: "harmonia preestabelecida". Com efeito, na sua Teodicéia, que data de 1710, e na qual ele revida passo a passo os golpes que lhe endereçara M. Bayle, vemos várias vezes o filósofo evocar as metáforas do arquiteto e do escultor. As­sim, no parágrafo 130: 

É verdade que Deus faz da matéria e do espírito o que bem lhe apraz, mas ele é como um bom escultor, que faz do seu bloco de mármore somente aquilo que julga ser o melhor. ( ... ) Deus faz da matéria a mais excelente de todas as máquinas possíveis, ele faz do espírito o mais excelente de todos os governos concebíveis e, aci­ma de tudo, estabelece para a união deles a mais perfeita de todas as harmonias; é o que se encontra no sistema que eu propus. 

Como podemos constatar, pouco ou nenhum espaço so­bra nesse cosmos para a liberdade da vontade humana, pois as criaturas, sendo uma vez por todas determinadas ou "regula­das" pelo Criador, tornam-se como que autômatos que devem mecanicamente seguir o movimento inscrito em todas as de­mais substâncias. É certo que a doutrina da "harmonia preesta­belecida" permitiu a Leibniz encontrar uma solução para o problema das relações entre corpo e alma, problema este que já fora levantado, ou retomado, por Descartes e aprofundado pelos ocasionalistas. De sorte que, em vez de perguntar-se se é a alma ou o corpo que age um sobre o outro, o sistema leibniziano desenvolve e realiza uma perfeita correspondência entre essas duas entidades em virtude da harmonia que reina entre todas as mônadas. Resta, no entanto, como acabamos de lembrar, a espinhosa questão da vontade, da liberdade e do livre-arbítrio. Como então solucionar e justificar este problema? 
Na mesma Monadologja, escrito póstumo de 1714 que re­presenta, juntamente com os Princípios da natureza e da graça, uma espécie de suma do pensamento leibniziano, o filósofo tenta sair dessa aporia fazendo um cotejo entre, de um lado, o espírito ou a alma comum e, de outro, a mente ou o espírito humano. Já se pode adivinhar o papel de superioridade que, nesse confronto, desempenhará o espírito humano com rela· ção ao espírito comum. Pois além das distinções que em outras passagens já havia desenvolvido, aqui ele volta a afirmar que os espíritos em geral se apresentam como "espelhos ou imagens do universo das criaturas", enquanto as mentes ou o espírito humano são, ainda por cima, imagens da própria divindade ou do autor da natureza. Isso os torna aptos a conhecer o sistema do universo e, também, a imitar algo desse mesmo sistema atra­vés das representações esquemáticas (echantillons architectoniques) que dele fazem. Afinal de contas, todo espírito humano se asse­melha a "uma pequena divindade no seu próprio reino?", Daí poderem esses espíritos entrar numa espécie de sociedade com Deus e poder também o Criador agir em relação a eles não como um inventor se comportaria diante da sua máquina nem como o mesmo Deus trataria as criaturas não-racionais, pois ele é para os seres dotados de razão aquilo que um príncipe deveria ser para os seus súditos e um pai para os seus filhos".
 
Ora, o que parecia encaminhar-se para uma solução do problema da liberdade da vontade humana terminou, ao con­trário, erigindo-se corno uma estrutura de poder ou uma escala de graus de domínio que manifestam uma relação de comando e obediência, de ordem e vassalagem, de interdito e resistência, pois não há relação. de poder que não comporte ao mesmo tempo tensão e desejo. Assim é a dialética do mestre e do escra­vo, do pai e do filho, de Deus e do povo de Israel. É que o sistema leibniziano é e resta hierárquico como todo sistema é hierárquico e totalitário nas suas pretensões e concretizações. Embora a razão ou o espírito humano participe da vida divina na medida em que a espelha ou a representa no seu mais alto grau, e não só a espelha eminentemente, mas também conhece o universo e dele imita algo através das representações que de-· senvolve, o seu lugar está no entanto, e de antemão, determina­do na interconexão das substâncias que gera a "harmonia prees­tabelecida". É interessante observar que, para justificar a condi­ção sobressalente que ocupa o espírito humano no universo das coisas criadas, Leibniz emprega não somente as metáforas do príncipe e do pai, mas também aquelas do monarca, do reino e do estado teocrático, que ele designa sob a expressão agostiniana de Cidade de Deus. Essa Cidade, ou essa "monarquia verdadeiramente universal, é o mundo moral dentro do mundo natural, a mais alta e mais divina das obras de Deus'?", Deste modo, à "perfeita harmonia" que havia estabelecido Leib­niz entre os dois reinos naturais, isto é, o reino das causas eficientes e o das causas finais, vem agora se ajuntar a harmonia que se instaura entre o reino físico da natureza e o reino moral da graça, "entre Deus considerado como o arquiteto do mecanismo do universo e Deus visto como o monarca da cidade divina do espírito". 

Depois dessas considerações, não pode deixar de causar­nos estranheza a declaração de Kierkegaard acima apontada, segundo a qual Leibniz fora o único filósofo moderno a ter o pressentimento da retomada22• É bem verdade que o autor não afirma ter Leibniz descoberto ou desenvolvido a teoria da reto­mada. O que, no entanto, ele reivindica para o pensador da Teodicéia é a prioridade no haver intuído ou pressentido esse conceito. Mas, não obstante o fato de Leibniz dele ter apenas vislumbrado os fundamentos e a importância para o seu siste­ma - o que já redunda numa descoberta não desprezível -, resta que, como pudemos constatar, a repetição tal qual se en­contra na Teodicéia e na Monadologia pouco, ou quase nada, tem a ver com a retomada elaborada pelo autor de Temor e tremor. 

Do cosmos ao indivíduo 


Certo, no sistema leibniziano da harmonia universal, em que as diferentes substâncias se concatenam umas às outras e agem umas sobre as outras através da percepção e da appetitio, o presente se afirma do futuro, ou "está prenhe do faturo", na medida em que ele é possibilidade, abertura, tendência e cons­tante atualização de potencialidades múltiplas. Por conseguin­te, em virtude da perfeita interconexão de todas as coisas, Deus que tudo vê, vê simultaneamente em cada criatura, em cada átomo e em cada partícula - por mais ínfima que seja - o desenrolar infinito de todas as demais substâncias, de todas as mônadas ou, o que dá no mesmo, do universo todo inteiro. Todas as repetições e diferenças que se efetuarão já se acham de antemão - mesmo que indistintamente representadas - inscritas no interior de cada mônada. Na mente do Criador, porém, elas se deixam perceber no seu mais alto grau de precisão e clareza ou, como íamos dizendo, os desdobramentos que se operarão a partir da mudança de perspectiva no interior de cada substância já se acham dados, melhor, já foram antecipados e determinados pela pre-ciência, ou pre-vidência, do arquiteto do universo. A visão de mundo que apresenta· Leibniz é, pois, contrariamente .à reminiscência grega e similarmente à retomada kierkegaardiana, voltada para o futuro e para as transformações das virtualidades que o presente encerra. Ambas apostam no devir, na sua dinâmica e nos seus desenvolvimentos infindos. 

Mas eis a diferença fundamental entre essas duas concep­ções. Enquanto em Leibniz a visão do presente e do futuro se desenrola segundo um plano cósmico, isto é, no seio de uma abrangência universal e obedecendo às leis da causa eficiente e da causa final, em Kierkegaard a retomada se refere antes de tudo ao indivíduo. E ao indivíduo considerado nas suas particularidade, singularidade, finitude e, paradoxalmente, nas suas possibilidades infinitas de decisão. Por isso, o indivíduo é na sua essência - se é que de essência se pode aqui falar - um ser angustiado. Se há um problema que atravessa toda a obra kierkegaardiana e obsidia o filósofo do começo até o fim, é o problema da finitude da existência e, conseqüentemente, de tudo aquilo que ela apresenta de desafio, de solicitação, de divisão, de laceração e possibilidades de superação que jamais cessam de terminar, porque nunca terminam de começar ou, mais exatamente, de recomeçar. 


A angústia, a retomada e a criação 
O conceito de angústia 

Somos, pois, e espontaneamente, transportados para o campo da liberdade, outro conceito que separa radicalmente as visões de Leibniz e de Kierkegaard quanto à retomada e às suas implicações. Com efeito, se o ser humano aparece na concepção kierkegaardiana como uma síntese do psíquico e do físico, resta que essa síntese seria impensável, ou incom­pleta, sem um terceiro elemento que os unisse. E esse elemen­to, que na verdade é uma força - e uma força hostil ao ho­mem, que, no entanto, dele faz parte essencial-, Kierkegaard o chama de espírito". No estado de inocência que, para Kier­kegaard, é o estado que antecede a transgressão do interdito e, por conseguinte, da culpa, o homem não é simplesmente animal, pois, se em qualquer momento da sua vida ele fosse meramente animal, não poderia jamais se tornar homem. Isto quer significar que o espírito nele está presente, mas como imediato, ou como espírito que sonha, e é nessa condição de presente e sonhador que ele se manifesta, de certa forma, como uma força hostil ao próprio homem. Esta força é hostil na medida em que está constantemente perturbando a relação entre a alma e o corpo, relação esta que tem a capacidade de persistir, mas não de resistir por si só, já que depende do espiríto para poder se manter enquanto relação. Em outros termos, essa relação persiste, mas à mercê das variações e vicissitudes 



do espírito, permanecendo assim como uma relação precária, prestes a romper-se ou a anular-se a qualquer momento. Por outro lado, o espírito se revela, ambivalentemente, como uma força amiga, pois é por seu intermédio que a relação se constitui e se mantém viva". Estamos, portanto, diante de um jogo indefinido de duas forças, ou de duas tendências, que Freud mais tarde designará sob os nomes de pulsões de vida e pulsões de morte, que Empédocles já considerava como o conflito eterno entre filia e neikos e Nietzsche subsumirá sob o conceito da vontade de potência. 

Pois, como já vimos no capítulo anterior, a vontade de potência em Nietzsche é ambígua na medida em que ela se exprime também como vontade de morte ou como tendência para aniquilar-se ou apagar-se no reino do inorgânico, do inanimado, do nada. Mas ela não deixa de ser e de permanecer aquilo que o seu nome indica: vontade de potência. Manifestando-se e se expandindo como relações de forças que lutam umas contra as outras e, ao mes­mo tempo, cooperam umas com as outras, elas nunca param de incluir-se, de separar-se e de superar-se mutuamente. Por isso nunca chegam a uma síntese ou Aujhebung terminal. 

Partindo de um outro nível de leitura quanto à análise que faz das forças operantes no homem, Kierkegaard observa e cons­tata, ele também, um eterno conflito na relação que mantém o espírito entre corpo e alma. Trata-se igualmente, como acenamos acima, de um jogo paradoxal de forças amigas e inimigas, de tendências que se opõem umas às outras, mas que, ao mes- · mo tempo, se pertencem mútua e radicalmente. De resto, tanto em Kierkegaard como em Empédocles, em Nietzsche e em Freud, essas forças não podem nem ser pensadas separadas umas das outras. Por isso Kierkegaard se interroga: Qual é então a rela­ção do homem com este poder ambíguo? Como o espírito se relaciona consigo mesmo e com a sua condição, ou seja, com esse movimento conflituoso que ele mesmo condiciona e, incessantemente, põe em marcha? A resposta, para Kierkegaard, não poderia ser outra senão esta: a relação do espírito se dá como angústia. Desembaraçar-se de si mesmo ele não pode; apreender-se, não consegue, pois se coloca como exterior a si mesmo; cair num entorpecimento vegetativo seria para o ho­mem o fim de todas as coisas, pois é enquanto espírito que ele se qualifica; fugir da angústia também não consegue, pois ele a ama; mas amá-la realmente lhe seria impossível, pois é justa­mente da angústia que ele tenta fugir. Com isso a inocência atingiu o seu paroxismo. Ela é e continua sendo ignorância, mas não no sentido de uma ignorância animalesca. Trata-se, ao inverso, de uma ignorância qualificada pelo espírito, e é por isso mesmo que a inocência se revela como angústia, porque a sua ignorância é ignorância diante do nada. 

Essa ambigüidade de forças e tendências que caracteriza o ser humano no mais profundo do seu ser, Kierkegaard resumiu-a numa formulação emblemática que, pela sua penetração e sua sutileza extraordinárias, resulta igualmente desconcertante e para­doxal: "A angústia é uma antipatia simpática e uma simpatia antipáti­ca''"'. Já os brutos não podem ter angústia, justamente porque, dada a sua própria natureza animal, não se qualificam como espí­rito, ou pelo espírito. É que lhes falta esse terceiro elemento que serve de elo, de ponte e de passagem responsável pela co-municação entre corpo e alma. Eis a razão pela qual os animais não conversam consigo mesmos, não refletem sobre si mesmos, nem tão pouco dia-togam com os seus semelhantes, atributo exclusivo da lingua­gem humana, pela mediação da palavra. Certo, não se pode negar que também os animais se comunicam entre si e que eles são aptos a formar um simbolismo que lhes permite sobreviver quan­do juntos em sociedade. Mas essa comunicação se dá, como dirá Émile Benveniste ao se referir ao comportamento das abelhas, por meio de um "código de sinais" que encerram conteúdos fixos e mensagens invariáveis e que, pela relação a uma situação única, indicam a natureza indecomponível do enunciado e, por conseguinte, a sua transmissão unilateral".

Esta postagem trás um trecho do livro do ALMEIDA, Rogério Miranda de, no capitulo final o livro aborta o conceito da repetição em kierkergaard encontra-se nas ,páginas187 a 232.
Por respeitar diretos autorais não foi postado o capitulo inteiro do livro. mas um trecho deste capitulo.


ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e Freud: eterno retorno e compulsão à repetição. São Paulo: Loyola, 2005. 236 p. (Leituras filosóficas).


Que é Rogério Miranda de Almeida?

"Rogério Miranda de Almeida é um filósofo, teólogo, escritor e professor universitário". Wikipédia


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