quinta-feira, 8 de setembro de 2016

A Repetição kierkegaard - Livro Completo pdf

 Título: A Repetição Título original: Gjentagelsen (1843)   De acordo com a edição Soren Kierkegaards Skrifter, vols. 4 e K4 © Soren Kierkegaard Forskningscenteret, Copenhaga, 1997.   O Soren Kierkegaard Forskningscenter é apoiado pela Fundação Nacional Dinamarquesa para a Investigação. Autor: Soren Kierkegaard  Tradução do dinamarquês, introdução e notas: José Miranda Justo Coordenação editorial: Niels Jergen Cappelem , Leonel Ribeiro dos Santos, José Miranda Justo e Elisabete M. de Sousa Responsabilidade científica: José Miranda Justo e Elisabete M. de Sousa Revisão de texto: Anabela Prates Carvalho e Inês Achega Leitão Capa: Carlos César   © Relógio D'Água Editores, Dezembro de 2009Título: A Repetição Título original: Gjentagelsen (1843) 

De acordo com a edição Soren Kierkegaards Skrifter, vols. 4 e K4 © Soren Kierkegaard Forskningscenteret, Copenhaga, 1997. 

O Soren Kierkegaard Forskningscenter é apoiado pela Fundação Nacional Dinamarquesa para a Investigação.
Autor: Soren Kierkegaard 
Tradução do dinamarquês, introdução e notas: José Miranda Justo Coordenação editorial: Niels Jergen Cappelem , Leonel Ribeiro dos Santos, José Miranda Justo e Elisabete M. de Sousa Responsabilidade científica: José Miranda Justo e Elisabete M. de Sousa Revisão de texto: Anabela Prates Carvalho e Inês Achega Leitão Capa: Carlos César


© Relógio D'Água Editores, Dezembro de 2009

Edição feita em colaboração com o Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e com Soren Kierkegaard Forskningscenteret da Universidade de Copenhaga. Por protocolo assinado entre as duas instituições, o SKFC cedeu ao CFUL os direitos sobre a utilização da edição dos Soren Kierkegaards Skrifter e dos respectivos aparatos críticos. O Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa é apoiado no âmbito do Programa de Financiamento Plurianual das Unidades de I&D da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), que se enquadra no Programa Operacional Ciência, Tecnologia, Inovação (POCTI). Este Programa insere-se no III Quadro Comunitário de Apoio e é co-financiado pelo Governo Português e a União Europeia, através do Fundo Europeu para o Desenvolvimento Regional (FEDER).

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

kierkegaard - Patrick Gardiner


título:KIERKEGAARD
título original: Kierkegaard
isbn: 9788515022243
idioma: Portuguêsen
cadernação: Brochuraformato: 12 x 17
páginas: 136
coleção: MESTRES DO PENSAR
ano de edição: 2013ano 
copyright: 2001edição: 

Trechos Online Do livro Link Abaixo:


sinopse: Kierkegaard, um dos mais originais pensadores do século XIX, escreveu sobre temas religiosos, psicólogicos e literários. Este livro mostra como Kierkegaard desenvolveu seus pontos de vista em franca oposição às opiniões dominantes. Descreve-se sua reação às teorias ética e religiosa de Kant e de Hegel e contrasta-se sua posição diante das doutrinas de Feuerbach e de Marx.

LE BLANC, Charles. Kierkegaard - PREFÁCIO



LE BLANC, Charles. Kierkegaard. Trad.: Marina Appenzeller. São Paulo: Estação liberdade, 2003.


p.11-15
As grandes datas  
1813 Nascimento a 5 de maio, em Copenhague, de Soren Aabye Kierkegaard. No mesmo ano nascem Wag­ner, Hebbel e Verdi. 

1818 Nascimento de Karl Marx. 

1820 Kierkegaard conhece o bispo Mynster. 

1830 Kierkegaard se inscreve na universidade. 

1831 Morte de Hegel. 

1837 Kierkegaard conhece Regina Olsen; leciona latim por algum tempo em um liceu de Copenhague. 

1838 Morte de seu professor e amigo P. M. Meller em março. Morte de seu pai a 8 de agosto. Dele re­cebe uma grande herança. Sofre seu "terremoto", nome que dá à grande crise espiritual que o trans­formará. 

1840 Kierkegaard passa em seu exame de teologia (2 e 3 de julho) e, a 10 de setembro, fica noivo de Regina Olsen. 

1841 A 29 de setembro, defende sua dissertação, Om Begrebet ironi [ O conceito de ironia], para obter o grau de Magister Artium; a 11 de outubro, rompe o noivado e, alguns dias depois, vai a Berlim acom­panhar os cursos de Schelling (Filosofia da revela­ção). Feuerbach publica A essência do cristianismo. 


1843 Publicação de Enten-Eller [ Ou ... ou ... ], Fryght og Bsevea [Temor e tremor], Gjentagelsen [A repe­tição]. Segunda viagem a Berlim. 

1844 Publicação de Philosophiske Smuller [Migalhas fi­losóficas] (1846) e de Begrebet Angest [Conceito de angústia]. Nascimento de Nietzsche. 

1845 Publicação de Stadier paa Livets Vei [Estádios no caminho da vida]. Terceira viagem a Berlim. 

1846 Em janeiro, Corsaren [O Corsário], jornal satí­rico, inicia seus ataques contra Kierkegaard. Pu­blicação do Afsluttende uvidenskabelig Efterskrift [Post-scriptum final não-científico às migalhas filosóficas]. Quarta viagem a Berlim. 

184 7 Kierkegaard visita várias vezes o rei Cristiano VII. 

Publicação de Kjerlighedens Gjerninger [ Obras do amor]. Em novembro, Regina Olsen desposa F. Schlegel. 

1849 Publicação de Sygdommen til Deden [A doença até a morte]. Kierkegaard escreve a Regina para explicar sua conduta. A carta é devolvida sem ter sido aberta. Nascimento de Strindberg. 

1850 Iniciam-se os problemas financeiros. Publicação de Indevelse i Christendom [Escola do cristianismo]. 

1851 Kierkegaard publica vários Opbyggelige Taler [Discursos edificantes]. 

1854 Morte do bispo Mynster. 

1855 Kierkegaard entra em polêmica com a Igreja di­namarquesa, sobretudo com Martensen; edita, pa­gando de seu bolso, um panfleto, 0ieblikket [ O instante]. Regina abandona a Dinamarca para ir morar nas Antilhas (março). Em 2 de outubro, Kie­rkegaard perde os sentidos em uma rua de Co­penhague. Morre, arruinado, a 11 de novembro, recusando a comunhão. 



Prefácio


Existem verdades nas quais temos de comprometer a nós mesmos, tão essenciais que a existência é incompreen­sível sem elas, e sem as quais a vida não tem sentido.' Essas verdades não fornecem o em si do sentido da vida, objetivo e intemporal, mas um sentido para si, para a subjetividade, para aquele indivíduo concreto que vive aqui e agora, cuja alma é incessantemente agitada pelas incertezas da existência e pelas escolhas diante das quais ela o coloca.
Como o pensamento filosófico (entenda-se especulativo), interessado pelas coisas em si e construindo sistemas abs­tratos, poderia explicar a situação real e existente do indi­víduo que sofre, se desespera, ama e morre? A verdade para esse indivíduo é apenas um problema de conceito? Não seria antes algo de que devemos nos apropriar, tornar nosso, uma verdade para si? A verdade que importa ao indivíduo presa das vicissitudes da existência pode ser ensinada em uma cátedra universitária? Não exige que dela nos tornemos testemunhas ao longo de todo o caminho da vida, por meio da experiência da angústia e do desespero? 
É a convicção de Seren Kierkegaard. Ele quer descobrir as condições que permitem apropriar-se do saber, torná-lo seu, chegar a um conhecimento que satisfaça tanto as exigências da intelectualidade quanto às da existência e da interioridade. 

"Trata-se de achar uma verdade que seja única para mim, encontrar a idéia pela qual eu queira viver ou morrer. " ¹


Soren Kierkegaard luta contra o Sistema - não existe sistema da existência -; contra o idealismo - a existência não é redutível ao pensamento sobre a existência-; enfim, contra o panteísmo - Deus não se confunde com o Espírito absoluto de Hegel e não é o ponto de remate do desenvol­vimento dialético da idéia filosófica. 
Pensador religioso, preocupou-se - aí repousa toda sua atividade de escritor - em colocar em evidência as ilusões confortáveis nas quais via se perderem os cristãos de seu tempo: para tratar de reconduzi-los à via dolorosa de um cristianismo jamais adquirido, por "natureza" sempre in­cômodo, sempre exigindo mais um sofrimento, de um cris­tianismo autêntico; para tentar mostrar-lhes o que poderia de fato significar e prometer esse "devir cristão" ao qual os chamava. Não se contentar em ser cristão, mas ter de sê-lo, onde a ênfase está, em primeiro lugar, no esforço e no mo­vimento: ter de ser. 
Assim, ele foi levado a apresentar, por meio de uma obra desconcertante - de tanto que mescla os gêneros -, a existência em sua irredutibilidade a algo que não ela mes­ma, em sua singularidade, sob uma nova luz - não objeto determinável de saber, mas indeterminação sob o apelo da transcendência, produzindo temas e conceitos (angústia, iro­nia, liberdade, responsabilidade, opção, autenticidade, etc.) que tiveram um destino considerável, bem além daqueles a quem Kierkegaard tentava influenciar: ele é considerado o pai do existencialismo, e a dívida é reconhecida, por ve­zes com reticência, de Gabriel Marcel a Jean-Paul Sartre, passando por Karl Barth, Martin Heidegger, Léon Chestov, Emmanuel Lévinas e Vladimir Jankélévitch. 


1.     ]ournal, IA 75. [Utilizamos os títulos em francês das edições indicadas pelo autor sempre que vierem acompanhados de número de página ou volume. Na primeira vez em que aparecer referência a obras de Kierke­gaard registraremos o título original em dinamarquês e, entre colchetes, a tradução em português; nas vezes seguintes, utilizaremos somente o títu­lo em português, com exceção dos casos anteriormente indicados. (N. Ed. Bras.)]

KIERKEGAARD - COLEÇÃO FILOSOFIA PASSO-A-PASSO - Alvaro L. M. Valls; Jorge Miranda de Almeida.

Filosofia Passo - a - Passo.  KIERKEGAARD: N. 78 - Alvaro L. M. Valls; Jorge Miranda de Almeida -Editora: ZAHAR Coleção: FILOSOFIA
p.67-78





Seleção de textos 





Aforismos do jovem esteta de A alternativa I 


Afora meu numeroso círculo de amizades restante, ainda tenho uma confidente íntima: minha melancolia; em meio à minha alegria, em meio ao meu trabalho, ela me acena, chama-me à parte, ainda que eu permaneça corporalmente no mesmo lugar. Minha melancolia é a mais fiel das amantes que já conheci. Que há de estranho em que eu também a ame? 

Perguntem-me o que quiserem, só não me perguntem acerca de razões. A uma menina se perdoa se não souber fornecer as razões, ela vive no sentimento, como se diz. Comigo é diferente. Em geral eu tenho tantas razões e, no mais das vezes, intimamente contraditórias, que por isso mesmo se me torna impossível fornecer as razões. Com causa e efeito, parece-me que também as coisas não combinam como deviam. Ora surge de uma causa enorme e poderosa um efeito bem pequenininho e imperceptível, às vezes mesmo efeito nenhum; ora uma causa minúscula desencadeia um efeito gi­gantesco. 
É preciso uma grande ingenuidade para crer que adianta gritar e clamar pelo mundo como se com isso se conseguisse alterar o próprio destino. Tome-se a coisa como ela se  apresenta, renunciando-se à prolixidade. Quando, em minha juventude, eu entrava num restaurante, dizia ao gar­çom: Um pedaço bom, um pedaço bem bom, do lombo, que não seja gordo demais. O garçom talvez nem ouvisse meu grito, e menos ainda atentasse para ele, supondo que minha voz pudesse chegar até a cozinha e pudesse mover aquele que cortava a carne. Muito embora tudo isso acontecesse, talvez riem mesmo existisse um bom pedaço em todo o es­peto. Agora eu não grito jamais. 




Migalhas filosóficas 

O que aconteceu, aconteceu, assim como aconteceu, e assim é imutável; mas essa imutabilidade é a da necessidade? A imutabilidade do passado consiste em que o "assim" de sua realidade não pode vir a ser diferente; mas segue-se daí que o "como" possível desse passado não teria podido vir a ser de outra maneira? A imutabilidade do necessário, bem ao contrário, consiste no relacionar-se sempre consigo mesmo e relacionar-se sempre consigo mesmo do mesmo modo. Ela exclui toda e qualquer mudança, não se contenta com a imutabilidade do passado que, como foi mostrado, não só é dialética em relação a uma mudança anterior, da qual resulta, mas também tem de ser dialética até mesmo em relação a uma mudança de ordem superior, que a anula .... 

O futuro ainda não aconteceu, mas não é por isso menos necessário do que o passado, visto que o passado não se tornou mais necessário por ter acontecido.mas ao contrário mostrou, por ter acontecido, que não era necessário. Se o passado se tivesse tornado necessário, não se deveria poder concluir o oposto no que concerne ao futuro, porém, ao contrário, daí se seguiria que o futuro também era necessário. Caso a necessidade pudesse penetrar num único ponto, não se poderia mais falar de passado e de futuro. Querer predizer o futuro (profetizar) e querer compreender a necessidade do passado é completamente a mesma coisa, e é apenas uma questão de moda se a uma geração uma parece mais plausível do que a outra. 

O passado, afinal de contas deveio; o devir é a mudança  da realidade pela liberdade. Ora , se o passado se tivesse tornado necessário, não mais pertenceria à liberdade, isto é, àquilo pelo qual ele veio a ser. A liberdade estaria então numa posição ruim, faria, ao mesmo tempo rir e chorar, pois levaria a culpa daquilo que não seria da competência, produziria aquilo que a necessidade logo haveria de engolir, e a própria liberdade tornar -se-i- a uma ilusão, e o devir não menos; a liberdade tornar-se-ia bruxaria, e o devir, alarme falso. 

O conceito de angústia 

A inocência é ignorância. Na inocência, o homem não  está determinado como espírito, mas determinado psiquicamente em unidade imediata com sua naturalidade.O espirito esta está sonhando no homem. Tal interpretação esta em perfeita concordância com a da Bíblia que, ao negar ao homem em em estado de inocência o conhecimento da diferença entre bem e mal, condena todas as fantasmagorias católicas sobre o mérito. 

Nesse estado há paz e repouso, mas ao mesmo tempo há outra coisa que, sem embargo, não é agitação nem luta, pois não há nada contra o que lutar. Mas, então, o que é? Nada. Mas que efeito exerce esse nada? Engendra angústia. Esse é o profundo mistério da inocência: ela é ao mesmo tempo angústia. Sonhando, projeta o espírito sua própria realidade, mas essa realidade é nada, porém esse nada a inocência vê continuamente fora dela .... 

A angústia é a possibilidade da liberdade, só essa angústia é, pela fé, absolutamente formadora, na medida em que consome todas as coisas finitas, descobre todas as suas ilusões .... Aquele que é formado pela angústia é formado pela possibilidade e só quem for formado pela possibilidade estará formado de acordo com sua infinitude. A possibilidade é, por conseguinte, a mais pesada de todas as categorias .... Não, na possibilidade tudo é igualmente possível e aquele que, em verdade, foi educado pela possibilidade entendeu tanto aquela que o espanta quanto a que lhe sorri .... Mas para que um indivíduo deva ser formado assim tão absoluta e infinitamente pela possibilidade, ele tem de ser honesto frente à possibilidade e ter a fé. Por fé compreendo aqui o que Hegel, à sua maneira, em algum lugar, corretissimamente, chama de a certeza interior que agarra de antemão a infinitude. Se forem administradas ordenadamente as descobertas da possibilidade, aí a possibilidade há de descobrir todas as finitudes, mas há de idealizá-las na forma da infinitude e há de mergulhar o indivíduo na angústia, _até que este, por sua parte, vença-as na antecipação da fé. 


A doença para a morte 


O homem é espírito. Mas o que é espírito? Espírito é o si­ mesmo. Mas o que é o si-mesmo?   O si-mesmo é uma relação que se relaciona consigo mesma, ou consiste no seguinte: que na relação a relação se relacione consigo mesma; o si-mesmo não é a relação, mas consiste em que a relação se relacione consigo mesma. O homem é uma síntese de infinitude e de finitude, do temporal e do eterno, de liberdade e de necessi­dade, em suma, é uma síntese .... Se essa relação que se rela­ciona consigo mesma é constituída por um outro, então ela é decerto o terceiro termo .... Uma relação assim derivada, constituída, é o si-mesmo humano, uma relação que se re­laciona consigo mesma e, no relacionar-se consigo mesma, relaciona-se com um outro .... Se o si-mesmo humano tives­se se constituído, só poderia haver uma forma de desespero: não querer ser si-mesmo, querer livrar-se de si-mesmo; não se poderia falar da outra forma, o querer desesperadamente ser si-mesmo. Com efeito.essa fórmula é a expressão da total dependência dessa relação (do si-mesmo), ela exprime que o si-mesmo não pode, por si mesmo, nem alcançar o equi­líbrio e o repouso nem aí permanecer, mas só o conseguirá quando, ao relacionar-se consigo mesmo, relacionar-se também com aquele que constituiu a totalidade da relação. Sim, essa segunda forma de desespero (desesperadamente querer ser si-mesmo) está tão longe de designar uma espécie particular de desespero que, ao contrário, todo desespero, em última análise, dissolve-se nela e é reconduzido a ela .... A má relação do desespero não é uma simples má relação, mas uma má relação numa relação que se relaciona consigo mesma e é constituída por um outro, de modo que a má relação, naquela relação presente, ao mesmo tempo se refle­te infinitamente na relação para com o Poder que a consti­tuiu. Pois essa é a fórmula que descreve o estado do si-mes­mo quando o desespero está completamente erradicado: relacionando-se consigo mesmo, e querendo ser ele mesmo, o si-mesmo se funda transparentemente no Poder que o constituiu. 

Referências e fontes 

A maioria das obras de Kierkegaard não está traduzida para o português. O pesquisador teria de usar as Samlede Vaerker, ou as que o Centro de Investigações de Kierkegaard, de Co­penhague, vem publicando, com grande aparato crítico, sob o título de Soren Kierkegaards Skrifter (SKS). Serão 55 volu­mes, com as obras e os cadernos dos diários. Há somente traduções fragmentárias dos Diários. Pode-se ler Kierke­gaard em francês nas Oeuvres Completes (Paris, Orante), or­ganizadas por Paul-Henri e Else-Marie Tisseau, ou em in­glês, de Princeton, Kierkegaard's Writings, organizada por Howard e Edna Hong. Quem lê alemão dispõe das Gesam­melte Werke, de Gütersloh, traduzidas por Emanuel Hirsch e Hayo Gerdes. Há traduções italianas também muito úteis. 

Em português, as traduções mais antigas incluem O diário do sedutor, O conceito de angústia e O desespero huma­no - traduções sofríveis. Temor e tremor pode ser lido na coleção Os Pensadores. A melhor coletânea é a de E. Reich­mann: Soren Kierkegaard - Textos selecionados, esgotada e com nova edição revisada prevista. Edições 70, de Portugal, publicou o Ponto de Vista. In vino veritas tem uma boa tra­dução, recente, de J.M. Justo (Lisboa). 

No Brasil, vão surgindo traduções a partir do dinamar­quês. Em 1991, O conceito de ironia; em 1995, as Migalhas filosóficas. Mais tarde, Sílvia S. Sampaio traduziu É preciso duvidar de tudo, e, em 2005, saíram As obras do amor, pela Editora Universidade São Francisco. Uma edição crítica de O conceito de angústia está em andamento, prevista para 2008. Henri N. Levinspuhl traduziu muitos títulos assina­dos por Kierkegaard, como vários Discursos edificantes

Na internet, encontram-se os demais pormenores edi­toriais, além. de muitos outros que não cabem aqui. A So­breski (Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard) tem uma página com informações úteis. 
O que se lia antigamente sobre Kierkegaard no Brasil apenas traduzia opiniões sem fundamento ou meros preconceitos. Ernani Reichmann foi a grande exceção, e continua lembra­do como a estrela maior desse firmamento. Hoje já conta­mos com alguns doutores que leram Kierkegaard com aten­ção. Nomes como Ricardo Gouvêa, Sílvia Sampaio, Márcio de Paula, Deyve Santos, Guiomar de Grammont, Cleide Scarlatelli e outros mostram muito estudo dedicado ao dinamarquês. Podemos indicar dez títulos acessíveis, introdu­tórios, que contêm uma bibliografia bem pormenorizada: 

De Paula, Márcio Gimenes. Socratismo e cristianismo em Kierkegaard: o escândalo e a loucura. São Paulo, Anna­blume, 2001. 

Farago, France. Compreender Kierkegaard. Petrópolis, Vozes, 2006. 

Gouvêa, Ricardo Q. A palavra e o silêncio. Kierkegaard e a relação dialética entre razão e fé em Temor e tremor. São Paulo: Custom, 2002. 

___ . Paixão pelo paradoxo. Uma introdução a Kierke­gaard. São Paulo, Novo Século, 2000. 

Hannay, A. e G. Marino. The Cambridge Companion to Kier­kegaard. Cambridge University Press, 1998. Esse livro traz bons comentadores estrangeiros atuais. 




Leituras recomendadas 

Le Blanc, Charles. Kierkegaard. São Paulo, Estação Liberda­de, 2003. 

Revista Filosofia Unisinos, vol.6, n.3, set-dez 2005. Número da revista dedicado a Kierkegaard. 

Roos, Jonas. Razão e fé no pensamento de Kierkegaard. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2006. Inteligente dissertação de perspectiva teológica. 

Valls, Alvaro. Do desespero silencioso ao elogio do amor desin­teressado. Porto Alegre, Escritos, 2004. Com traduções e comentários. 

___ . Entre Sócrates e Cristo. Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre, Edipucrs, 2000. 


Sobre os autores 


Jorge Miranda de Almeida nasceu na Bahia e estudou na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É doutor em filosofia pela Universidade Gregoriana, de Roma, com tese sobre Kierkegaard. Pesquisa especialmente as relações entre Lévinas e Kierkegaard e leciona ética e filosofia con­temporânea na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb ), Bahia. Publicou "A categoria do edificante na cons­trução da ética-segunda em Kierkegaard', na revista Filoso­fia Unisinos, ano 6, n.3, p.276-293, set-dez 2005. É o atual presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierke­gaard (Sobreski). E-mail: mirandaj@uol.com.br

Alvaro Luiz Montenegro Valls nasceu no Rio Grande do Sul e estudou em São Paulo. É doutor em filosofia pela Univer­sidade de Heidelberg, Alemanha, com tese sobre Kierke­gaard. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) por três décadas, hoje leciona ética e filosofia moderna na Unisinos e é pesquisador do CNPq. Traduziu do dinamarquês O conceito de ironia (Universidade São Fran­cisco), Migalhas filosóficas (Vozes), As obras do amor (Uni­versidade São Francisco), É preciso duvidar de tudo (com Sílvia S. Sampaio, Martins Fontes), e Do desespero silencioso ao elogio do amor desinteressado (Escritos). É autor de O que é ética (Brasiliense) e Entre Sócrates e Cristo. Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. (Edipucrs). Ajudou a criar a Sobreski e um boletim eletrônico intitulado Severino. E­mail: alvalls@unisinos.br

A REPETIÇÃO EM HEGEL, KIERKEGAARD E NIETZSCHE





Acaso e repetição em psicanálise : uma introdução à teoria das pulsões / 1996 - ( Livro) 

GARCÍA-ROZA, L. A. Acaso e repetição em psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1996. 128 p. ISBN 85-8506-154-5


p.27-38








A REPETIÇÃO EM HEGEL, KIERKEGAARD E NIETZSCHE


No começo era o caos - é o que nos diz Hesíodo na Teogonia. Sobre esse lugar indiferenciado, inabitado pelos deuses e pelos homens, anterior ao primeiro dia e à primeira palavra, cai o mais absoluto silêncio. 
Rompido o silêncio do caos, o que se ouviu foi a palavra enigmática e lacunar do mito contando a história dos começos. Frente ao indeterminado, surge ô mito narrando a ordem pri­meira, ordem· esta concebida não como anterior ao caos, mas como um efeito dele, não. como fundamento necessário - aos acontecimentos ou como ,razão imanente ao mundo e às coisas, mas como resultante do acaso original. O mythos é a narrativa des­ses começos. 

Estrangeiro pela palavra, o homem procurou ordenar o caos criando modelos para os acontecimentos presentes e futu­ros. É a partir desses acontecimentos primeiros que o homem grego vai forjar o conceito de natureza. Os feitos dos deuses e dos heróis não são determinados a priori, não obedecem a ne­nhuma ordem preestabelecida, não são a manifestação de nenhuma lei. Os deuses e os heróis não atualizam uma natureza, eles produzem-na a partir do caos original. Esses acontecimentos primordiais, uma vez produzidos, transformam-se em modelos pura a conduta dos homens. O homem das culturas arcaicas e primitivas repete esse modelo, sendo que é através dessa repeti­ção que os fatos do cotidiano ganham sentido e realidade. Os acontecimentos do mundo não possuíam realidade em si mesmos, mas apenas na medida em que repetiam acontecimentos pretéritos. Ora, como todo acontecimento original caracteriza­va-se0 por ser um ato de criação por parte de um deus ou de um herói, a conduta exemplar era aquela que repetia indefinidamente a criação original. Temos, assim, acontecimentos sagrados e acontecimentos profanos, os primeiros repetindo um modelo original, e os segundos sendo estranhos a esse modelo, Os atos exemplares são, portanto, a - históricos, cabendo a historicidade apenas aos atos profanos. O mundo, no que possui de verdadeiro (ou de sagrado), é uma repetição. O que não é repetição permanece imerso no caos, carecendo de sentido e de realidade. 

Assim, desde a mais remota antigüidade, a repetição é uma questão central para o homem. Desde o mito, passando pe­lo "eterno retorno" de Heráclito até Nietzsche, o terna da repe­tição atravessa a história do pensamento ocidental. Ou ando ele ressurge na obra de Freud - no início, timidamente, até 'trans­formar-se em tema central de Além do princípio de prazer - o faz com o peso dessa história, e o Édipo é sua marca registrada. 

Dentre os autores que tratam da questão da repetição, e que fazem parte do mesmo solo do saber no interior do qual a psicanálise fez sua emergência, Hegel, Kierkegaard e Nietzsche transformaram-se em referenciais privilegiados pelos comentadores de Freud, apesar de a influência direta que os dois primeiros possam ter tido sobre ele ser quase nula. Nós porém não podemos ignorá-los. Se há algo que podemos considerar como sendo comum a Hegel, Kierkegaard, Nietzsche e Freud, é, em primeiro lugar, a importância que eles conferem à repetição, e, em segundo lugar, o fato de que para eles repetição não é reminiscência.

A aproximação entre Hegel e Freud através do conceito de repe­tição já foi feita há trinta anos por Jean Hyppolite, numa conferência pronunciada na Sociedade Francesa de Psicanálise.' Hyppolite propõe aproximar a Fenomenologia do Espírito de Hegel e A interpretação de sonhos de Freud através da noção de retrospecção, noção esta que se encontra também na base da leitura que Édipo faz de sua própria história, e que encerra o fundamental da prática psicanalítica . 

O fio condutor da releitura que. Hyppolite faz de Fenomenologia é a noção de verdade entendida como desvelamento, que se efetua pela intersubjetividade ou, na terminologia hege­liana, pela intercomunicação de duas autoconsciências humanas. Segundo Hegel, essa comunicação intersubjetiva só pode ser fei­ta pela linguagem, única mediação possível entre autoconsciên­cias, isto é, único meio dessas autoconsciências saírem de suas respectivas certezas subjetivas e constituírem uma verdade ob­jetiva. Mas como nos diz Hegel, a verdade nunca é um dado, mas o resultado de um processo que ao mesmo tempo a produz e a revela. Esse desvelamento implica, porém, uma releitura - nurn primeiro momento, o fenômeno é considerado enquanto vivido, enquanto experiência do sujeito (certeza subjetiva); num segun­do momento, o da releitura, ele é incluído na .totalidade do Es­pírito (Geist) que revela a sua verdade. 

O que Hvppolite propõe é uma analogia entre o percurso realizado pela consciência, desde o seu momento de inconsciên­cia-de-si até a autoconsciência, e o caminho percorrido por Édi­po em direção à sua verdade de parricida e incestuoso, Essa ex­periência, que é descrita na Fenomenologia do Espírito de He­gel, é também aquela que realiza o paciente na prática clínica psicanalítica. É importante ressaltar que tanto em Hegel como em Freud, esse percurso se constitui com a experiência que o sujeito faz de si mesmo e não como algo que lhe possa ser acres­centado de fora. Da mesma forma como Edipo não se reconhe­ceria parricida e incestuoso se essa verdade lhe fosse dita logo após ter assumido o trono de Tebas e ter-se casado com Jocasta, também o paciente psicanalítico não reconheceria como sua a his­tória que lhe fosse comunicada prematuramente pelo psicanalisa. O desconhecimento de Édipo quanto à sua verdade assim co­mo o desconhecimento do paciente quanto ao significado do seu sintoma são da mesma natureza que o desconhecimento com que é marcada a consciência ingênua de que Hegel nos fala na Fenomenologia do Espírito. A certeza (subjetiva) que carac­teriza a consciência somente será substituída pela verdade (obje­tiva) ao final do processo que revelará, retrospectivamente, ocaráter ocultador do momento inicial. Não há outro caminho para a verdade senão aquele que se constitui pela experiência que a consciência empreende dela mesma. É portanto a Totali­dade que confere verdade plena ao fenômeno; sem ela, ele permanece incompleto enquanto sentido. Trata-se de uma concep­ção,essencialmente grega da realidade. 


A visão kierkeqaardiana da repetição difere da de Hegel na medida em que não admite a totalização (o mesmo podemos di­zer da concepção freudiana). Está mais próxima da visão cristã do. que da visão grega, na medida em que a visão cristã admite que a · repetição pela fé apresenta a possibilidade de uma renovação.

Em Kierkegaard, o tema da repetição não está presente apenas no livro que leva este título, mas desenvolve-se na parte de sua obra que ele designa como 'estética". Assim, por exem­plo, temos não apenas a repetição rnal sucedida de Constantino Constantius em A repetição, como também a repetição bem-su­cedida de Johannes de Silentio em Temor e tremor. 2 Já no pre­fácio do primeiro, Kierkegaard nos adverte que repetição não é reminiscência; não se trata também da repetição natural, identi­ficada com a lei, nada que se assemelhe ao movimento dos as­tros ou ao ciclo das estações. O conceito surge da confrontação da subjetividade com a realidade, e é colocada sob a forma de uma pergunta inicial: "Uma coisa, ao ser repetida, ganha ou perde?"

Uma primeira resposta poderia ser a de que haveria indis­cutivelmente uma perda, posto que o ganho só poderia advir de uma fuga à repetição, tornando possível a vivência do instan­te. Este não é, porém, o ponto de vista de Constantino Constan­tius, para quem a existência não é o puro acaso do devir, mas re­petição. Repetição, diz ele, tomada "no sentido grego" do ter­mo. É no conceito grego de Kinesis (movimento, mudança). particularmente tal como foi pensado por Aristóteles, que Kierkegaard vai buscar apoio para empreender sua crítica à concepção hegeliana de mudança. No entanto, apesar da evidente crítica de Constantino Constantius a Hegel, e do tão declarado anti-hegelianismo de Kierkegaard, não seria inteiramente desca­bido afirmarmos que o pensador' dinamarquês retoma a noção hegeliana de "releitura" conferindo-lhe novo sentido. Claro está que isto não implica estabelecermos uma filiação de Kierkegaard a Hegel (pelo menos num sentido linear) ou em aproximarmos o conteúdo de ambos os pensamentos; o que está sendo assinalado aqui, como presente a ambos, é o conceito de repetição.

Ao retomar a noção de repetição, Kierkegaard vai distinguir o que ele chama de repetição numérica (pura reprodução de algo) da repetição propriamente dita. Enquanto a primeira é a repetição que encontramos na natureza, uma forma de manutenção do mesmo, a segunda é produtora de diferenças; en­quanto a primeira se expressa sob a forma da lei e diz respei­to ao semelhante, à generalidade, a segunda é contrária à lei. É nesse sentido que Kierkegaard afirma que é preciso entender a repetição "no sentido grego", isto é, come algo que diz respeito a uma singularidade, singularidade esta que afirma a eter­nidade mas não a permanência. Não se trata de afirmar uma eterna repetição do "mesmo", mas de mostrar que o eterno retorno de que nos falam os gregos aponta para o que podemos chamar de repetição diferencial. Os acontecimentos, quando re­petidos, já não são os mesmos. A própria repetição de uma palavra não traz com ela a repetição do sentido. 

É movido por esse sentimento de que o tempo impõe ao eterno retorno uma marca renovadora, que Constantino/ Kierkegaard empreende a tentativa de reviver todo o encanto de uma noite de estréia num teatro em Berlim, e a experiência fracassa. O fracasso ocorre porque o personagem de Constantino Constantius empreende sua tentativa de uma maneira excessivamente objetiva. Não se trata, evidentemente, de proceder a uma reprodução pura e simples da experiência anterior, até mesmo porque isto seria impossível, nem de retomá-la desde fora, da exterioridade, mas ao contrário, trata-se. de um exercício de liberdade. 

O que Kierkegaard distingue aqui é a repetição natural,que se confunde com a lei, e a repetição como liberdade, como potência de interioridade, como subjetividade. O alvo da crítica de Kierkegaard, nesse momento, é Kant. Sabemos que uma das questões kantianas, sobretudo na Crítica do juízo, é a de encontrar o fundamento da unidade entre d domínio da natureza e o da liberdade, assim como a passagem de um a outro. Kierkegaard não admite que essa passagem possa ser feita pelo conhecimen­to, e aponta a repetição como uma possibilidade, contanto que ela não seja confundida com reminiscência.

Em Différence et répétition, 4 Deleuze aponta quatro ca­racterísticas da repetição em Kierkegaard, que são ao mesmo tempo pontos de coincidência com a concepção de Nietzsche: 1) A repetição implica algo novo, está vinculada, para Kierkegaard, a uma seleção e colocada como objeto supremo da liberdade e da vontade. Repetir não é contemplar nem lembrar, mas atuar, "trata-se de fazer da repetição como tal uma novidade, quer dizer, uma liberdade e uma tarefa da liberdade".5 Essa opo­sição entre o recordar e o atuar, vamos encontrá-la também em Freud referida à questão da repetição. Para Freud, a repeti­ção substitui a recordação, e se ela num primeiro momento é tomada sob um aspecto puramente negativo (como resistência), num segundo momento ela é considerada como o fundamento da transferência e produtora de novidade. 2) A repetição se opõe às leis da natureza; ela diz respeito ao que há de mais in­terior na vontade e não às mudanças e igualdades que se dão em conformidade com as leis da natureza. Sob este aspecto, Kierkegaard condena tanto a repetição epicuréia como a estóica.3)A repetição se opõe à lei moral; é obra do solitário, é o logos dó "pensador privado". Este último é tomado por Kierkegaard como o oposto do professor público, cujo discurso conceitual torna-o "doutor da lei')"' 4) A repetição se opõe às generalidades do hábito assim como às particularidades da reminiscência. Pela repetição, o esquecimento transforma-se numa potência positiva, e o inconsciente se converte em um inconsciente su­perior positivo." 

Vimos acima que podemos distinguir duas formas de repe­tição: uma repetição-reprodução, repetição do "mesmo", tipo de repetição que Kierkegaard chamava de natural e que se con­tunde com a lei; e uma repetição diferencial, produtora do novo e de diferenças. Nietzsche foi o grande filósofo da repetição di­ferencial, o que faz dele um pensador trágico por excelência. O que se entende por "trágico" aqui é a afirmação do acaso, repe­tição diferencial de uma afirmação que é - um puro devir. Não há trágico naquilo que é absolutamente novo, o tr áqico implica repetição. Também o acaso puro não é trágico, ele é a afirmação primeira, o devir, o puro acontecimento. Este, como diz C. Hosset, pode até ser catastrófico, mas nada tem de trágico, na medida em que o trágico não se define pela dor e pela tristeza, mas pela afirmação do acaso. 7 O trágico é a afirmação da afirmação, -ele não é propriamente da ordem do acontecimento, mas da afirmação do acontecimento. A primeira afirmação é o devir (acaso); a segunda afirmação, que afirma a primeira, afir­ma o ser do devir (necessidade). Esta repetição é, no entanto, re­petição diferencial, não se trata de uma cópia do primeiro acon­tecimento, mas de uma repetição produtora de diferenças. O que é preciso acrescentar ao acontecimento (puro acaso) para que ele· se constitua como tráqico é o logos - a palavra ou a in­terioridade. Essa interioridade não deve ser entendida como in­teriorização da exterioridade, não se trata da interiorização da ordem e da lei. A repetição trágica não é uma negação do acaso, mas a sua própria afirmação constituindo-se como necessidade. 

Essa concepção da repetição, Nietzsche vai buscar em He­ráclito, o único dentre os pré-socráticos que ele considerava co­mo um pensador trágico, posto que afirmava o devir e o ser do devir. Essa dupla afirmação corresponde aos dois momentos do jogo de dados de que nos fala Nietzsche em Zaratustra: os dados lançados e os dados que caem. Os dados lançados são a afirmação do acaso; os dados que caem são a afirmação da necessidade. O acaso é identificado ao múltiplo, ao caos, enquanto que a necessidade (ananke) é a própria afirmação do acaso, sua própria combinação e não sua eliminação do acaso. Em Heráclito esses dois momentos correspondem àphysis e ao logos. A afirmação não afirma o ser; é ela própria o ser. Enquanto afirmação primeira ela é devir, mas ela mesma é objeto também de outra afirmação. Assim, tomada em toda a sua extensão, a afirmação é dupla, é preciso uma segunda afirmação para que a afirmação seja ela própria afirmada9 Acaso e necessidade não se opõem, combinam-se numa unidade complexa, sendo a necessidade uma reafirmação do próprio acaso. Enquanto tal, ela é uma repetição diferencial - este é o sentido do eterno retorno de Nietzsche. 

O trágico implica a repetição. Isto não faz, porém, com que o pensamento trágico opere sobre um "dado". O acaso não é o dado sobre o qual o trágico vai se constituir, já que o dado implica o ordenado, enquanto o acaso é anterior a qualquer or­dem. Poderíamos ainda supor que o primeiro momento do aca­so-trágico seria. marcado pelo inconsciente e que o segundo mo­mento assinalaria a passagem à consciência. Glement Rosset 10 nos mostra porém que o que o pensamento trágico se propõe fa­zer é passar o trágico não do inconsciente à consciência, mas do silêncio à palavra. O trágico é o que nos remete para além dos li­mites do discurso conceituai e o que silencia esse discurso. 

A concepção nietzschiana do trágico difere ainda da que nos oferece Schopenhauer, que o identifica com uma visão pes­simista do mundo. A repetição trágica de que nos fala Nietzsche nada tem a ver com o pessimismo, sendo mesmo sua negação, já que o pessimismo supõe uma natureza que aparece a ele como insatisfatória." O trágico de repetição, para Nietzsche, não pressupõe uma natureza - seja ela boa ou má. não se refere a uma culpa ou injustiça cósmica do tipo proclamado por Anaximandro, à qual temos que nos submeter numa expiação infindá­vel. Para o pensamento trágico, o homem não é culpado, não ca­rece de nada, não é definido pela falta: "O trágico se define pela cotidianidade e não pela exceção e pela catástrofe ( ... ). Não existem duas esferas de realidade - a trágica e a não trágica - mas dois modos de olhar (o trágico e o não trágico). 

Não se trata aqui de fazermos o inventário daquilo que se ropete de forma idêntica por oposição às repetições diferenciais, o nem mesmo de admitirmos que a repetição-reprodução perten­ce ao domínio da natureza, enquanto que a repetição diferencial pertence ao domínio do humano. Trata-se, acima de tudo, de deixar patente a diferença profunda que preside cada uma das concepções da repetição. · 

Foi partindo do fato de que a repetição-reprodução era possível dentro do domínio do humano, que J. B.- Watson, ao fundar o behaviorismo, descartou qualquer referência à interio­ridade do sujeito por considerá-la metodologicamente inútil. Pa­ra o behaviorisrno de Watson, "uma vez dado o estímulo, a psi­cologia deve predizer a resposta; ou inversamente, uma vez dada a resposta, a psicologia deve especificar a natureza do estimulo". Claro está que a partir desse ponto de vista, toda vez que só repetir o mesmo estímulo teremos a mesma resposta. No en­tanto, antes mesmo de findar o século XIX, esse associacionis­mo de tipo mecanicista já era alvo de severas críticas, sobretudo no que se referia à questão da repetição. Assim, William James recusava a possibilidade de um mesmo estado de consciência se repetir de maneira idêntica, pois cada sensação provoca uma mudança no cérebro e, portanto, para que um estado de consciência volte a se produzir uma segunda vez de forma idêntica, te­ria que se dar em um cérebro imutável. E somente de uma maneira artificial que essa repetição é possível, e mesmo assim é discutível. Os experimentos sobre o behavior são possíveis com animais dentro dos limites impostos pelas condições experimentais. São portanto abstratos. Transpor seus resultados para o domínio do humano é desconhecer que o homem fala, que pela linguagem ela opera uma metamorfose rio real, constituindo um mundo irredutível ao mundo animal. O mundo humano é o mundo do sentido, mundo que não é pensável fora da referência ao simbólico. Esta é a razão pela qual Jacques Lacan, em algum momento dos seus seminários, afirma que não há behavior hu­mano, mas ato humano, isto é, algo que se constitui como senti­do e que é indissociável da linguagem. Uma palavra, ou mesmo uma frase, quando repetida, não traz com ela a repetição do seu sentido. E a esse respeito, o conto de Borges "Pierre Menard, au­tor do Quixote" é exemplar.

Borges nos fala de Um certo Pierre Menard, que teria con­traído o misterioso dever de reconstruir literalmente o D. Qui­xote, de Cervantes. "Não queria compor outro Quixote - o que é fácil - mas o Quixote. Inútil acrescer que nunca visionou qualquer transcrição mecânica do original; não se propunha co­piá-lo. Sua admirável ambição era produzir páginas que coinci­dissem - palavra por palavra e linha por linha - com as de Mi­guel de Cervantes."16 Para tanto, o curioso romancista dedicou-se ao espanhol do século XVI 1, à fé católica, à guerra contra os mouros e ao esquecimento de tudo o que havia ocorrido entre os séculos XVII e XX. "Dedicou seus escrúpulos e vigílias a re­petir num idioma alheio um livro preexistente. Multiplicou os apontamentos; corrigiu tenazmente e rasgou milhares de páginas manuscritas." Resultou desse trabalho de anos e anos um texto rigorosamente igual ao de Cervantes, só que o de Pierre Menard "é quase infinitamente mais rico". E Borges propõe um cotejo entre os dois.Assim, no nono capítulo da primeira parte, Cervantes escreveu:


"( ... ) a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro." 


Pierre Menard, em compensação, escreveu: . 

"(. .. ) a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro." 


O primeiro texto, escreve Borges, redigido no século XVI 1 por Cervantes, "é um mero elogio retórico da história", em nada comparável ao de Menard. Este escreve que a história é mãe da verdade; "a idéia é espantosa". "Menard, contemporâneo de William James, não define a história como um indagação da rea­lidade, mas como sua origem. A verdade histórica, para ele, não é o que sucedeu; é o que pensamos que sucedeu. As cláusulas fi­nais exemplo e aviso do presente, advertência do futuro - são descaradamente pragmáticas." 

"Vívido também é o contraste dos estilos. O estilo arcai­zante de Menard - no fundo estrangeiro - padece de alguma afetação. Não assim o do precursor, que com desenfado maneja o espanhol corrente de sua época." Com ironia e corri humor, Borges prossegue o cotejo, que nunca seria excessivo reproduzir aqui, mas prefiro remeter o leitor ao próprio Borges. 

Imaginemos um poeta excêntrico e solitário, reescrevendo a Ilíada e a Odisséia, compondo verso por verso, escolhendo cui­dadosamente cada palavra para eliminá-las em seguida, por não estarem contidas no texto homérico. Repetição-reprodução que o gênio de Borges transforma em repetição diferencial. Será esse Pierre Menard nosso neurótico? O obsessivo de que nos fala Freud? Ou será ele a imagem do intelectual que persegue minu­ciosa e incansavelmente as indicações de pé de página do seu au­tor predileto - que Borges ironicamente chama de "precur­sor" -, procurando assim repetir seu percurso para reproduzir sua grande obra? Não é demais lembrar que "repetir" (do latim repetere) significa "tornar a dizer ou escrever", isto ê, algo que diz respeito à linguagem ou, num sentido mais amplo, aos atos humanos e não aos fenômenos naturais. 

Kierkegaard se dá conta, através de Constantino Constan­tius, que repetição não é reprodução, ou mesmo que a reproducão em se tratando de atos humanos é impossível. O que Cons­tantino não consegue saber é como a repetição se constitui. Sua tentativa, inevitavelmente malsucedida, era a de reproduzir a magia do acontecimento primeiro. O que lhe escapava era que a magia residia na própria repetição e não na reprodução mecânica de um acontecimento primeiro. A repetição implica o novo. 


A magia do conto de Borges não está na reprodução minuciosa do texto de Cervantes por parte de Pierre Menard, mas no novo que a narrativa de Borges faz surgir. E essa noção de que a repetição demanda o novo, o acaso, de que ela está voltada para o lúdico, é que vai se constituir num dos pontos centrais da análise empreendida por Lacan do conceito de repetição em Freud.