quinta-feira, 8 de setembro de 2016

A Repetição kierkegaard - Livro Completo pdf

 Título: A Repetição Título original: Gjentagelsen (1843)   De acordo com a edição Soren Kierkegaards Skrifter, vols. 4 e K4 © Soren Kierkegaard Forskningscenteret, Copenhaga, 1997.   O Soren Kierkegaard Forskningscenter é apoiado pela Fundação Nacional Dinamarquesa para a Investigação. Autor: Soren Kierkegaard  Tradução do dinamarquês, introdução e notas: José Miranda Justo Coordenação editorial: Niels Jergen Cappelem , Leonel Ribeiro dos Santos, José Miranda Justo e Elisabete M. de Sousa Responsabilidade científica: José Miranda Justo e Elisabete M. de Sousa Revisão de texto: Anabela Prates Carvalho e Inês Achega Leitão Capa: Carlos César   © Relógio D'Água Editores, Dezembro de 2009Título: A Repetição Título original: Gjentagelsen (1843) 

De acordo com a edição Soren Kierkegaards Skrifter, vols. 4 e K4 © Soren Kierkegaard Forskningscenteret, Copenhaga, 1997. 

O Soren Kierkegaard Forskningscenter é apoiado pela Fundação Nacional Dinamarquesa para a Investigação.
Autor: Soren Kierkegaard 
Tradução do dinamarquês, introdução e notas: José Miranda Justo Coordenação editorial: Niels Jergen Cappelem , Leonel Ribeiro dos Santos, José Miranda Justo e Elisabete M. de Sousa Responsabilidade científica: José Miranda Justo e Elisabete M. de Sousa Revisão de texto: Anabela Prates Carvalho e Inês Achega Leitão Capa: Carlos César


© Relógio D'Água Editores, Dezembro de 2009

Edição feita em colaboração com o Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e com Soren Kierkegaard Forskningscenteret da Universidade de Copenhaga. Por protocolo assinado entre as duas instituições, o SKFC cedeu ao CFUL os direitos sobre a utilização da edição dos Soren Kierkegaards Skrifter e dos respectivos aparatos críticos. O Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa é apoiado no âmbito do Programa de Financiamento Plurianual das Unidades de I&D da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), que se enquadra no Programa Operacional Ciência, Tecnologia, Inovação (POCTI). Este Programa insere-se no III Quadro Comunitário de Apoio e é co-financiado pelo Governo Português e a União Europeia, através do Fundo Europeu para o Desenvolvimento Regional (FEDER).

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

kierkegaard - Patrick Gardiner


título:KIERKEGAARD
título original: Kierkegaard
isbn: 9788515022243
idioma: Portuguêsen
cadernação: Brochuraformato: 12 x 17
páginas: 136
coleção: MESTRES DO PENSAR
ano de edição: 2013ano 
copyright: 2001edição: 

Trechos Online Do livro Link Abaixo:


sinopse: Kierkegaard, um dos mais originais pensadores do século XIX, escreveu sobre temas religiosos, psicólogicos e literários. Este livro mostra como Kierkegaard desenvolveu seus pontos de vista em franca oposição às opiniões dominantes. Descreve-se sua reação às teorias ética e religiosa de Kant e de Hegel e contrasta-se sua posição diante das doutrinas de Feuerbach e de Marx.

LE BLANC, Charles. Kierkegaard - PREFÁCIO



LE BLANC, Charles. Kierkegaard. Trad.: Marina Appenzeller. São Paulo: Estação liberdade, 2003.


p.11-15
As grandes datas  
1813 Nascimento a 5 de maio, em Copenhague, de Soren Aabye Kierkegaard. No mesmo ano nascem Wag­ner, Hebbel e Verdi. 

1818 Nascimento de Karl Marx. 

1820 Kierkegaard conhece o bispo Mynster. 

1830 Kierkegaard se inscreve na universidade. 

1831 Morte de Hegel. 

1837 Kierkegaard conhece Regina Olsen; leciona latim por algum tempo em um liceu de Copenhague. 

1838 Morte de seu professor e amigo P. M. Meller em março. Morte de seu pai a 8 de agosto. Dele re­cebe uma grande herança. Sofre seu "terremoto", nome que dá à grande crise espiritual que o trans­formará. 

1840 Kierkegaard passa em seu exame de teologia (2 e 3 de julho) e, a 10 de setembro, fica noivo de Regina Olsen. 

1841 A 29 de setembro, defende sua dissertação, Om Begrebet ironi [ O conceito de ironia], para obter o grau de Magister Artium; a 11 de outubro, rompe o noivado e, alguns dias depois, vai a Berlim acom­panhar os cursos de Schelling (Filosofia da revela­ção). Feuerbach publica A essência do cristianismo. 


1843 Publicação de Enten-Eller [ Ou ... ou ... ], Fryght og Bsevea [Temor e tremor], Gjentagelsen [A repe­tição]. Segunda viagem a Berlim. 

1844 Publicação de Philosophiske Smuller [Migalhas fi­losóficas] (1846) e de Begrebet Angest [Conceito de angústia]. Nascimento de Nietzsche. 

1845 Publicação de Stadier paa Livets Vei [Estádios no caminho da vida]. Terceira viagem a Berlim. 

1846 Em janeiro, Corsaren [O Corsário], jornal satí­rico, inicia seus ataques contra Kierkegaard. Pu­blicação do Afsluttende uvidenskabelig Efterskrift [Post-scriptum final não-científico às migalhas filosóficas]. Quarta viagem a Berlim. 

184 7 Kierkegaard visita várias vezes o rei Cristiano VII. 

Publicação de Kjerlighedens Gjerninger [ Obras do amor]. Em novembro, Regina Olsen desposa F. Schlegel. 

1849 Publicação de Sygdommen til Deden [A doença até a morte]. Kierkegaard escreve a Regina para explicar sua conduta. A carta é devolvida sem ter sido aberta. Nascimento de Strindberg. 

1850 Iniciam-se os problemas financeiros. Publicação de Indevelse i Christendom [Escola do cristianismo]. 

1851 Kierkegaard publica vários Opbyggelige Taler [Discursos edificantes]. 

1854 Morte do bispo Mynster. 

1855 Kierkegaard entra em polêmica com a Igreja di­namarquesa, sobretudo com Martensen; edita, pa­gando de seu bolso, um panfleto, 0ieblikket [ O instante]. Regina abandona a Dinamarca para ir morar nas Antilhas (março). Em 2 de outubro, Kie­rkegaard perde os sentidos em uma rua de Co­penhague. Morre, arruinado, a 11 de novembro, recusando a comunhão. 



Prefácio


Existem verdades nas quais temos de comprometer a nós mesmos, tão essenciais que a existência é incompreen­sível sem elas, e sem as quais a vida não tem sentido.' Essas verdades não fornecem o em si do sentido da vida, objetivo e intemporal, mas um sentido para si, para a subjetividade, para aquele indivíduo concreto que vive aqui e agora, cuja alma é incessantemente agitada pelas incertezas da existência e pelas escolhas diante das quais ela o coloca.
Como o pensamento filosófico (entenda-se especulativo), interessado pelas coisas em si e construindo sistemas abs­tratos, poderia explicar a situação real e existente do indi­víduo que sofre, se desespera, ama e morre? A verdade para esse indivíduo é apenas um problema de conceito? Não seria antes algo de que devemos nos apropriar, tornar nosso, uma verdade para si? A verdade que importa ao indivíduo presa das vicissitudes da existência pode ser ensinada em uma cátedra universitária? Não exige que dela nos tornemos testemunhas ao longo de todo o caminho da vida, por meio da experiência da angústia e do desespero? 
É a convicção de Seren Kierkegaard. Ele quer descobrir as condições que permitem apropriar-se do saber, torná-lo seu, chegar a um conhecimento que satisfaça tanto as exigências da intelectualidade quanto às da existência e da interioridade. 

"Trata-se de achar uma verdade que seja única para mim, encontrar a idéia pela qual eu queira viver ou morrer. " ¹


Soren Kierkegaard luta contra o Sistema - não existe sistema da existência -; contra o idealismo - a existência não é redutível ao pensamento sobre a existência-; enfim, contra o panteísmo - Deus não se confunde com o Espírito absoluto de Hegel e não é o ponto de remate do desenvol­vimento dialético da idéia filosófica. 
Pensador religioso, preocupou-se - aí repousa toda sua atividade de escritor - em colocar em evidência as ilusões confortáveis nas quais via se perderem os cristãos de seu tempo: para tratar de reconduzi-los à via dolorosa de um cristianismo jamais adquirido, por "natureza" sempre in­cômodo, sempre exigindo mais um sofrimento, de um cris­tianismo autêntico; para tentar mostrar-lhes o que poderia de fato significar e prometer esse "devir cristão" ao qual os chamava. Não se contentar em ser cristão, mas ter de sê-lo, onde a ênfase está, em primeiro lugar, no esforço e no mo­vimento: ter de ser. 
Assim, ele foi levado a apresentar, por meio de uma obra desconcertante - de tanto que mescla os gêneros -, a existência em sua irredutibilidade a algo que não ela mes­ma, em sua singularidade, sob uma nova luz - não objeto determinável de saber, mas indeterminação sob o apelo da transcendência, produzindo temas e conceitos (angústia, iro­nia, liberdade, responsabilidade, opção, autenticidade, etc.) que tiveram um destino considerável, bem além daqueles a quem Kierkegaard tentava influenciar: ele é considerado o pai do existencialismo, e a dívida é reconhecida, por ve­zes com reticência, de Gabriel Marcel a Jean-Paul Sartre, passando por Karl Barth, Martin Heidegger, Léon Chestov, Emmanuel Lévinas e Vladimir Jankélévitch. 


1.     ]ournal, IA 75. [Utilizamos os títulos em francês das edições indicadas pelo autor sempre que vierem acompanhados de número de página ou volume. Na primeira vez em que aparecer referência a obras de Kierke­gaard registraremos o título original em dinamarquês e, entre colchetes, a tradução em português; nas vezes seguintes, utilizaremos somente o títu­lo em português, com exceção dos casos anteriormente indicados. (N. Ed. Bras.)]

KIERKEGAARD - COLEÇÃO FILOSOFIA PASSO-A-PASSO - Alvaro L. M. Valls; Jorge Miranda de Almeida.

Filosofia Passo - a - Passo.  KIERKEGAARD: N. 78 - Alvaro L. M. Valls; Jorge Miranda de Almeida -Editora: ZAHAR Coleção: FILOSOFIA
p.67-78





Seleção de textos 





Aforismos do jovem esteta de A alternativa I 


Afora meu numeroso círculo de amizades restante, ainda tenho uma confidente íntima: minha melancolia; em meio à minha alegria, em meio ao meu trabalho, ela me acena, chama-me à parte, ainda que eu permaneça corporalmente no mesmo lugar. Minha melancolia é a mais fiel das amantes que já conheci. Que há de estranho em que eu também a ame? 

Perguntem-me o que quiserem, só não me perguntem acerca de razões. A uma menina se perdoa se não souber fornecer as razões, ela vive no sentimento, como se diz. Comigo é diferente. Em geral eu tenho tantas razões e, no mais das vezes, intimamente contraditórias, que por isso mesmo se me torna impossível fornecer as razões. Com causa e efeito, parece-me que também as coisas não combinam como deviam. Ora surge de uma causa enorme e poderosa um efeito bem pequenininho e imperceptível, às vezes mesmo efeito nenhum; ora uma causa minúscula desencadeia um efeito gi­gantesco. 
É preciso uma grande ingenuidade para crer que adianta gritar e clamar pelo mundo como se com isso se conseguisse alterar o próprio destino. Tome-se a coisa como ela se  apresenta, renunciando-se à prolixidade. Quando, em minha juventude, eu entrava num restaurante, dizia ao gar­çom: Um pedaço bom, um pedaço bem bom, do lombo, que não seja gordo demais. O garçom talvez nem ouvisse meu grito, e menos ainda atentasse para ele, supondo que minha voz pudesse chegar até a cozinha e pudesse mover aquele que cortava a carne. Muito embora tudo isso acontecesse, talvez riem mesmo existisse um bom pedaço em todo o es­peto. Agora eu não grito jamais. 




Migalhas filosóficas 

O que aconteceu, aconteceu, assim como aconteceu, e assim é imutável; mas essa imutabilidade é a da necessidade? A imutabilidade do passado consiste em que o "assim" de sua realidade não pode vir a ser diferente; mas segue-se daí que o "como" possível desse passado não teria podido vir a ser de outra maneira? A imutabilidade do necessário, bem ao contrário, consiste no relacionar-se sempre consigo mesmo e relacionar-se sempre consigo mesmo do mesmo modo. Ela exclui toda e qualquer mudança, não se contenta com a imutabilidade do passado que, como foi mostrado, não só é dialética em relação a uma mudança anterior, da qual resulta, mas também tem de ser dialética até mesmo em relação a uma mudança de ordem superior, que a anula .... 

O futuro ainda não aconteceu, mas não é por isso menos necessário do que o passado, visto que o passado não se tornou mais necessário por ter acontecido.mas ao contrário mostrou, por ter acontecido, que não era necessário. Se o passado se tivesse tornado necessário, não se deveria poder concluir o oposto no que concerne ao futuro, porém, ao contrário, daí se seguiria que o futuro também era necessário. Caso a necessidade pudesse penetrar num único ponto, não se poderia mais falar de passado e de futuro. Querer predizer o futuro (profetizar) e querer compreender a necessidade do passado é completamente a mesma coisa, e é apenas uma questão de moda se a uma geração uma parece mais plausível do que a outra. 

O passado, afinal de contas deveio; o devir é a mudança  da realidade pela liberdade. Ora , se o passado se tivesse tornado necessário, não mais pertenceria à liberdade, isto é, àquilo pelo qual ele veio a ser. A liberdade estaria então numa posição ruim, faria, ao mesmo tempo rir e chorar, pois levaria a culpa daquilo que não seria da competência, produziria aquilo que a necessidade logo haveria de engolir, e a própria liberdade tornar -se-i- a uma ilusão, e o devir não menos; a liberdade tornar-se-ia bruxaria, e o devir, alarme falso. 

O conceito de angústia 

A inocência é ignorância. Na inocência, o homem não  está determinado como espírito, mas determinado psiquicamente em unidade imediata com sua naturalidade.O espirito esta está sonhando no homem. Tal interpretação esta em perfeita concordância com a da Bíblia que, ao negar ao homem em em estado de inocência o conhecimento da diferença entre bem e mal, condena todas as fantasmagorias católicas sobre o mérito. 

Nesse estado há paz e repouso, mas ao mesmo tempo há outra coisa que, sem embargo, não é agitação nem luta, pois não há nada contra o que lutar. Mas, então, o que é? Nada. Mas que efeito exerce esse nada? Engendra angústia. Esse é o profundo mistério da inocência: ela é ao mesmo tempo angústia. Sonhando, projeta o espírito sua própria realidade, mas essa realidade é nada, porém esse nada a inocência vê continuamente fora dela .... 

A angústia é a possibilidade da liberdade, só essa angústia é, pela fé, absolutamente formadora, na medida em que consome todas as coisas finitas, descobre todas as suas ilusões .... Aquele que é formado pela angústia é formado pela possibilidade e só quem for formado pela possibilidade estará formado de acordo com sua infinitude. A possibilidade é, por conseguinte, a mais pesada de todas as categorias .... Não, na possibilidade tudo é igualmente possível e aquele que, em verdade, foi educado pela possibilidade entendeu tanto aquela que o espanta quanto a que lhe sorri .... Mas para que um indivíduo deva ser formado assim tão absoluta e infinitamente pela possibilidade, ele tem de ser honesto frente à possibilidade e ter a fé. Por fé compreendo aqui o que Hegel, à sua maneira, em algum lugar, corretissimamente, chama de a certeza interior que agarra de antemão a infinitude. Se forem administradas ordenadamente as descobertas da possibilidade, aí a possibilidade há de descobrir todas as finitudes, mas há de idealizá-las na forma da infinitude e há de mergulhar o indivíduo na angústia, _até que este, por sua parte, vença-as na antecipação da fé. 


A doença para a morte 


O homem é espírito. Mas o que é espírito? Espírito é o si­ mesmo. Mas o que é o si-mesmo?   O si-mesmo é uma relação que se relaciona consigo mesma, ou consiste no seguinte: que na relação a relação se relacione consigo mesma; o si-mesmo não é a relação, mas consiste em que a relação se relacione consigo mesma. O homem é uma síntese de infinitude e de finitude, do temporal e do eterno, de liberdade e de necessi­dade, em suma, é uma síntese .... Se essa relação que se rela­ciona consigo mesma é constituída por um outro, então ela é decerto o terceiro termo .... Uma relação assim derivada, constituída, é o si-mesmo humano, uma relação que se re­laciona consigo mesma e, no relacionar-se consigo mesma, relaciona-se com um outro .... Se o si-mesmo humano tives­se se constituído, só poderia haver uma forma de desespero: não querer ser si-mesmo, querer livrar-se de si-mesmo; não se poderia falar da outra forma, o querer desesperadamente ser si-mesmo. Com efeito.essa fórmula é a expressão da total dependência dessa relação (do si-mesmo), ela exprime que o si-mesmo não pode, por si mesmo, nem alcançar o equi­líbrio e o repouso nem aí permanecer, mas só o conseguirá quando, ao relacionar-se consigo mesmo, relacionar-se também com aquele que constituiu a totalidade da relação. Sim, essa segunda forma de desespero (desesperadamente querer ser si-mesmo) está tão longe de designar uma espécie particular de desespero que, ao contrário, todo desespero, em última análise, dissolve-se nela e é reconduzido a ela .... A má relação do desespero não é uma simples má relação, mas uma má relação numa relação que se relaciona consigo mesma e é constituída por um outro, de modo que a má relação, naquela relação presente, ao mesmo tempo se refle­te infinitamente na relação para com o Poder que a consti­tuiu. Pois essa é a fórmula que descreve o estado do si-mes­mo quando o desespero está completamente erradicado: relacionando-se consigo mesmo, e querendo ser ele mesmo, o si-mesmo se funda transparentemente no Poder que o constituiu. 

Referências e fontes 

A maioria das obras de Kierkegaard não está traduzida para o português. O pesquisador teria de usar as Samlede Vaerker, ou as que o Centro de Investigações de Kierkegaard, de Co­penhague, vem publicando, com grande aparato crítico, sob o título de Soren Kierkegaards Skrifter (SKS). Serão 55 volu­mes, com as obras e os cadernos dos diários. Há somente traduções fragmentárias dos Diários. Pode-se ler Kierke­gaard em francês nas Oeuvres Completes (Paris, Orante), or­ganizadas por Paul-Henri e Else-Marie Tisseau, ou em in­glês, de Princeton, Kierkegaard's Writings, organizada por Howard e Edna Hong. Quem lê alemão dispõe das Gesam­melte Werke, de Gütersloh, traduzidas por Emanuel Hirsch e Hayo Gerdes. Há traduções italianas também muito úteis. 

Em português, as traduções mais antigas incluem O diário do sedutor, O conceito de angústia e O desespero huma­no - traduções sofríveis. Temor e tremor pode ser lido na coleção Os Pensadores. A melhor coletânea é a de E. Reich­mann: Soren Kierkegaard - Textos selecionados, esgotada e com nova edição revisada prevista. Edições 70, de Portugal, publicou o Ponto de Vista. In vino veritas tem uma boa tra­dução, recente, de J.M. Justo (Lisboa). 

No Brasil, vão surgindo traduções a partir do dinamar­quês. Em 1991, O conceito de ironia; em 1995, as Migalhas filosóficas. Mais tarde, Sílvia S. Sampaio traduziu É preciso duvidar de tudo, e, em 2005, saíram As obras do amor, pela Editora Universidade São Francisco. Uma edição crítica de O conceito de angústia está em andamento, prevista para 2008. Henri N. Levinspuhl traduziu muitos títulos assina­dos por Kierkegaard, como vários Discursos edificantes

Na internet, encontram-se os demais pormenores edi­toriais, além. de muitos outros que não cabem aqui. A So­breski (Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard) tem uma página com informações úteis. 
O que se lia antigamente sobre Kierkegaard no Brasil apenas traduzia opiniões sem fundamento ou meros preconceitos. Ernani Reichmann foi a grande exceção, e continua lembra­do como a estrela maior desse firmamento. Hoje já conta­mos com alguns doutores que leram Kierkegaard com aten­ção. Nomes como Ricardo Gouvêa, Sílvia Sampaio, Márcio de Paula, Deyve Santos, Guiomar de Grammont, Cleide Scarlatelli e outros mostram muito estudo dedicado ao dinamarquês. Podemos indicar dez títulos acessíveis, introdu­tórios, que contêm uma bibliografia bem pormenorizada: 

De Paula, Márcio Gimenes. Socratismo e cristianismo em Kierkegaard: o escândalo e a loucura. São Paulo, Anna­blume, 2001. 

Farago, France. Compreender Kierkegaard. Petrópolis, Vozes, 2006. 

Gouvêa, Ricardo Q. A palavra e o silêncio. Kierkegaard e a relação dialética entre razão e fé em Temor e tremor. São Paulo: Custom, 2002. 

___ . Paixão pelo paradoxo. Uma introdução a Kierke­gaard. São Paulo, Novo Século, 2000. 

Hannay, A. e G. Marino. The Cambridge Companion to Kier­kegaard. Cambridge University Press, 1998. Esse livro traz bons comentadores estrangeiros atuais. 




Leituras recomendadas 

Le Blanc, Charles. Kierkegaard. São Paulo, Estação Liberda­de, 2003. 

Revista Filosofia Unisinos, vol.6, n.3, set-dez 2005. Número da revista dedicado a Kierkegaard. 

Roos, Jonas. Razão e fé no pensamento de Kierkegaard. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2006. Inteligente dissertação de perspectiva teológica. 

Valls, Alvaro. Do desespero silencioso ao elogio do amor desin­teressado. Porto Alegre, Escritos, 2004. Com traduções e comentários. 

___ . Entre Sócrates e Cristo. Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre, Edipucrs, 2000. 


Sobre os autores 


Jorge Miranda de Almeida nasceu na Bahia e estudou na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É doutor em filosofia pela Universidade Gregoriana, de Roma, com tese sobre Kierkegaard. Pesquisa especialmente as relações entre Lévinas e Kierkegaard e leciona ética e filosofia con­temporânea na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb ), Bahia. Publicou "A categoria do edificante na cons­trução da ética-segunda em Kierkegaard', na revista Filoso­fia Unisinos, ano 6, n.3, p.276-293, set-dez 2005. É o atual presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierke­gaard (Sobreski). E-mail: mirandaj@uol.com.br

Alvaro Luiz Montenegro Valls nasceu no Rio Grande do Sul e estudou em São Paulo. É doutor em filosofia pela Univer­sidade de Heidelberg, Alemanha, com tese sobre Kierke­gaard. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) por três décadas, hoje leciona ética e filosofia moderna na Unisinos e é pesquisador do CNPq. Traduziu do dinamarquês O conceito de ironia (Universidade São Fran­cisco), Migalhas filosóficas (Vozes), As obras do amor (Uni­versidade São Francisco), É preciso duvidar de tudo (com Sílvia S. Sampaio, Martins Fontes), e Do desespero silencioso ao elogio do amor desinteressado (Escritos). É autor de O que é ética (Brasiliense) e Entre Sócrates e Cristo. Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. (Edipucrs). Ajudou a criar a Sobreski e um boletim eletrônico intitulado Severino. E­mail: alvalls@unisinos.br

A REPETIÇÃO EM HEGEL, KIERKEGAARD E NIETZSCHE





Acaso e repetição em psicanálise : uma introdução à teoria das pulsões / 1996 - ( Livro) 

GARCÍA-ROZA, L. A. Acaso e repetição em psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1996. 128 p. ISBN 85-8506-154-5


p.27-38








A REPETIÇÃO EM HEGEL, KIERKEGAARD E NIETZSCHE


No começo era o caos - é o que nos diz Hesíodo na Teogonia. Sobre esse lugar indiferenciado, inabitado pelos deuses e pelos homens, anterior ao primeiro dia e à primeira palavra, cai o mais absoluto silêncio. 
Rompido o silêncio do caos, o que se ouviu foi a palavra enigmática e lacunar do mito contando a história dos começos. Frente ao indeterminado, surge ô mito narrando a ordem pri­meira, ordem· esta concebida não como anterior ao caos, mas como um efeito dele, não. como fundamento necessário - aos acontecimentos ou como ,razão imanente ao mundo e às coisas, mas como resultante do acaso original. O mythos é a narrativa des­ses começos. 

Estrangeiro pela palavra, o homem procurou ordenar o caos criando modelos para os acontecimentos presentes e futu­ros. É a partir desses acontecimentos primeiros que o homem grego vai forjar o conceito de natureza. Os feitos dos deuses e dos heróis não são determinados a priori, não obedecem a ne­nhuma ordem preestabelecida, não são a manifestação de nenhuma lei. Os deuses e os heróis não atualizam uma natureza, eles produzem-na a partir do caos original. Esses acontecimentos primordiais, uma vez produzidos, transformam-se em modelos pura a conduta dos homens. O homem das culturas arcaicas e primitivas repete esse modelo, sendo que é através dessa repeti­ção que os fatos do cotidiano ganham sentido e realidade. Os acontecimentos do mundo não possuíam realidade em si mesmos, mas apenas na medida em que repetiam acontecimentos pretéritos. Ora, como todo acontecimento original caracteriza­va-se0 por ser um ato de criação por parte de um deus ou de um herói, a conduta exemplar era aquela que repetia indefinidamente a criação original. Temos, assim, acontecimentos sagrados e acontecimentos profanos, os primeiros repetindo um modelo original, e os segundos sendo estranhos a esse modelo, Os atos exemplares são, portanto, a - históricos, cabendo a historicidade apenas aos atos profanos. O mundo, no que possui de verdadeiro (ou de sagrado), é uma repetição. O que não é repetição permanece imerso no caos, carecendo de sentido e de realidade. 

Assim, desde a mais remota antigüidade, a repetição é uma questão central para o homem. Desde o mito, passando pe­lo "eterno retorno" de Heráclito até Nietzsche, o terna da repe­tição atravessa a história do pensamento ocidental. Ou ando ele ressurge na obra de Freud - no início, timidamente, até 'trans­formar-se em tema central de Além do princípio de prazer - o faz com o peso dessa história, e o Édipo é sua marca registrada. 

Dentre os autores que tratam da questão da repetição, e que fazem parte do mesmo solo do saber no interior do qual a psicanálise fez sua emergência, Hegel, Kierkegaard e Nietzsche transformaram-se em referenciais privilegiados pelos comentadores de Freud, apesar de a influência direta que os dois primeiros possam ter tido sobre ele ser quase nula. Nós porém não podemos ignorá-los. Se há algo que podemos considerar como sendo comum a Hegel, Kierkegaard, Nietzsche e Freud, é, em primeiro lugar, a importância que eles conferem à repetição, e, em segundo lugar, o fato de que para eles repetição não é reminiscência.

A aproximação entre Hegel e Freud através do conceito de repe­tição já foi feita há trinta anos por Jean Hyppolite, numa conferência pronunciada na Sociedade Francesa de Psicanálise.' Hyppolite propõe aproximar a Fenomenologia do Espírito de Hegel e A interpretação de sonhos de Freud através da noção de retrospecção, noção esta que se encontra também na base da leitura que Édipo faz de sua própria história, e que encerra o fundamental da prática psicanalítica . 

O fio condutor da releitura que. Hyppolite faz de Fenomenologia é a noção de verdade entendida como desvelamento, que se efetua pela intersubjetividade ou, na terminologia hege­liana, pela intercomunicação de duas autoconsciências humanas. Segundo Hegel, essa comunicação intersubjetiva só pode ser fei­ta pela linguagem, única mediação possível entre autoconsciên­cias, isto é, único meio dessas autoconsciências saírem de suas respectivas certezas subjetivas e constituírem uma verdade ob­jetiva. Mas como nos diz Hegel, a verdade nunca é um dado, mas o resultado de um processo que ao mesmo tempo a produz e a revela. Esse desvelamento implica, porém, uma releitura - nurn primeiro momento, o fenômeno é considerado enquanto vivido, enquanto experiência do sujeito (certeza subjetiva); num segun­do momento, o da releitura, ele é incluído na .totalidade do Es­pírito (Geist) que revela a sua verdade. 

O que Hvppolite propõe é uma analogia entre o percurso realizado pela consciência, desde o seu momento de inconsciên­cia-de-si até a autoconsciência, e o caminho percorrido por Édi­po em direção à sua verdade de parricida e incestuoso, Essa ex­periência, que é descrita na Fenomenologia do Espírito de He­gel, é também aquela que realiza o paciente na prática clínica psicanalítica. É importante ressaltar que tanto em Hegel como em Freud, esse percurso se constitui com a experiência que o sujeito faz de si mesmo e não como algo que lhe possa ser acres­centado de fora. Da mesma forma como Edipo não se reconhe­ceria parricida e incestuoso se essa verdade lhe fosse dita logo após ter assumido o trono de Tebas e ter-se casado com Jocasta, também o paciente psicanalítico não reconheceria como sua a his­tória que lhe fosse comunicada prematuramente pelo psicanalisa. O desconhecimento de Édipo quanto à sua verdade assim co­mo o desconhecimento do paciente quanto ao significado do seu sintoma são da mesma natureza que o desconhecimento com que é marcada a consciência ingênua de que Hegel nos fala na Fenomenologia do Espírito. A certeza (subjetiva) que carac­teriza a consciência somente será substituída pela verdade (obje­tiva) ao final do processo que revelará, retrospectivamente, ocaráter ocultador do momento inicial. Não há outro caminho para a verdade senão aquele que se constitui pela experiência que a consciência empreende dela mesma. É portanto a Totali­dade que confere verdade plena ao fenômeno; sem ela, ele permanece incompleto enquanto sentido. Trata-se de uma concep­ção,essencialmente grega da realidade. 


A visão kierkeqaardiana da repetição difere da de Hegel na medida em que não admite a totalização (o mesmo podemos di­zer da concepção freudiana). Está mais próxima da visão cristã do. que da visão grega, na medida em que a visão cristã admite que a · repetição pela fé apresenta a possibilidade de uma renovação.

Em Kierkegaard, o tema da repetição não está presente apenas no livro que leva este título, mas desenvolve-se na parte de sua obra que ele designa como 'estética". Assim, por exem­plo, temos não apenas a repetição rnal sucedida de Constantino Constantius em A repetição, como também a repetição bem-su­cedida de Johannes de Silentio em Temor e tremor. 2 Já no pre­fácio do primeiro, Kierkegaard nos adverte que repetição não é reminiscência; não se trata também da repetição natural, identi­ficada com a lei, nada que se assemelhe ao movimento dos as­tros ou ao ciclo das estações. O conceito surge da confrontação da subjetividade com a realidade, e é colocada sob a forma de uma pergunta inicial: "Uma coisa, ao ser repetida, ganha ou perde?"

Uma primeira resposta poderia ser a de que haveria indis­cutivelmente uma perda, posto que o ganho só poderia advir de uma fuga à repetição, tornando possível a vivência do instan­te. Este não é, porém, o ponto de vista de Constantino Constan­tius, para quem a existência não é o puro acaso do devir, mas re­petição. Repetição, diz ele, tomada "no sentido grego" do ter­mo. É no conceito grego de Kinesis (movimento, mudança). particularmente tal como foi pensado por Aristóteles, que Kierkegaard vai buscar apoio para empreender sua crítica à concepção hegeliana de mudança. No entanto, apesar da evidente crítica de Constantino Constantius a Hegel, e do tão declarado anti-hegelianismo de Kierkegaard, não seria inteiramente desca­bido afirmarmos que o pensador' dinamarquês retoma a noção hegeliana de "releitura" conferindo-lhe novo sentido. Claro está que isto não implica estabelecermos uma filiação de Kierkegaard a Hegel (pelo menos num sentido linear) ou em aproximarmos o conteúdo de ambos os pensamentos; o que está sendo assinalado aqui, como presente a ambos, é o conceito de repetição.

Ao retomar a noção de repetição, Kierkegaard vai distinguir o que ele chama de repetição numérica (pura reprodução de algo) da repetição propriamente dita. Enquanto a primeira é a repetição que encontramos na natureza, uma forma de manutenção do mesmo, a segunda é produtora de diferenças; en­quanto a primeira se expressa sob a forma da lei e diz respei­to ao semelhante, à generalidade, a segunda é contrária à lei. É nesse sentido que Kierkegaard afirma que é preciso entender a repetição "no sentido grego", isto é, come algo que diz respeito a uma singularidade, singularidade esta que afirma a eter­nidade mas não a permanência. Não se trata de afirmar uma eterna repetição do "mesmo", mas de mostrar que o eterno retorno de que nos falam os gregos aponta para o que podemos chamar de repetição diferencial. Os acontecimentos, quando re­petidos, já não são os mesmos. A própria repetição de uma palavra não traz com ela a repetição do sentido. 

É movido por esse sentimento de que o tempo impõe ao eterno retorno uma marca renovadora, que Constantino/ Kierkegaard empreende a tentativa de reviver todo o encanto de uma noite de estréia num teatro em Berlim, e a experiência fracassa. O fracasso ocorre porque o personagem de Constantino Constantius empreende sua tentativa de uma maneira excessivamente objetiva. Não se trata, evidentemente, de proceder a uma reprodução pura e simples da experiência anterior, até mesmo porque isto seria impossível, nem de retomá-la desde fora, da exterioridade, mas ao contrário, trata-se. de um exercício de liberdade. 

O que Kierkegaard distingue aqui é a repetição natural,que se confunde com a lei, e a repetição como liberdade, como potência de interioridade, como subjetividade. O alvo da crítica de Kierkegaard, nesse momento, é Kant. Sabemos que uma das questões kantianas, sobretudo na Crítica do juízo, é a de encontrar o fundamento da unidade entre d domínio da natureza e o da liberdade, assim como a passagem de um a outro. Kierkegaard não admite que essa passagem possa ser feita pelo conhecimen­to, e aponta a repetição como uma possibilidade, contanto que ela não seja confundida com reminiscência.

Em Différence et répétition, 4 Deleuze aponta quatro ca­racterísticas da repetição em Kierkegaard, que são ao mesmo tempo pontos de coincidência com a concepção de Nietzsche: 1) A repetição implica algo novo, está vinculada, para Kierkegaard, a uma seleção e colocada como objeto supremo da liberdade e da vontade. Repetir não é contemplar nem lembrar, mas atuar, "trata-se de fazer da repetição como tal uma novidade, quer dizer, uma liberdade e uma tarefa da liberdade".5 Essa opo­sição entre o recordar e o atuar, vamos encontrá-la também em Freud referida à questão da repetição. Para Freud, a repeti­ção substitui a recordação, e se ela num primeiro momento é tomada sob um aspecto puramente negativo (como resistência), num segundo momento ela é considerada como o fundamento da transferência e produtora de novidade. 2) A repetição se opõe às leis da natureza; ela diz respeito ao que há de mais in­terior na vontade e não às mudanças e igualdades que se dão em conformidade com as leis da natureza. Sob este aspecto, Kierkegaard condena tanto a repetição epicuréia como a estóica.3)A repetição se opõe à lei moral; é obra do solitário, é o logos dó "pensador privado". Este último é tomado por Kierkegaard como o oposto do professor público, cujo discurso conceitual torna-o "doutor da lei')"' 4) A repetição se opõe às generalidades do hábito assim como às particularidades da reminiscência. Pela repetição, o esquecimento transforma-se numa potência positiva, e o inconsciente se converte em um inconsciente su­perior positivo." 

Vimos acima que podemos distinguir duas formas de repe­tição: uma repetição-reprodução, repetição do "mesmo", tipo de repetição que Kierkegaard chamava de natural e que se con­tunde com a lei; e uma repetição diferencial, produtora do novo e de diferenças. Nietzsche foi o grande filósofo da repetição di­ferencial, o que faz dele um pensador trágico por excelência. O que se entende por "trágico" aqui é a afirmação do acaso, repe­tição diferencial de uma afirmação que é - um puro devir. Não há trágico naquilo que é absolutamente novo, o tr áqico implica repetição. Também o acaso puro não é trágico, ele é a afirmação primeira, o devir, o puro acontecimento. Este, como diz C. Hosset, pode até ser catastrófico, mas nada tem de trágico, na medida em que o trágico não se define pela dor e pela tristeza, mas pela afirmação do acaso. 7 O trágico é a afirmação da afirmação, -ele não é propriamente da ordem do acontecimento, mas da afirmação do acontecimento. A primeira afirmação é o devir (acaso); a segunda afirmação, que afirma a primeira, afir­ma o ser do devir (necessidade). Esta repetição é, no entanto, re­petição diferencial, não se trata de uma cópia do primeiro acon­tecimento, mas de uma repetição produtora de diferenças. O que é preciso acrescentar ao acontecimento (puro acaso) para que ele· se constitua como tráqico é o logos - a palavra ou a in­terioridade. Essa interioridade não deve ser entendida como in­teriorização da exterioridade, não se trata da interiorização da ordem e da lei. A repetição trágica não é uma negação do acaso, mas a sua própria afirmação constituindo-se como necessidade. 

Essa concepção da repetição, Nietzsche vai buscar em He­ráclito, o único dentre os pré-socráticos que ele considerava co­mo um pensador trágico, posto que afirmava o devir e o ser do devir. Essa dupla afirmação corresponde aos dois momentos do jogo de dados de que nos fala Nietzsche em Zaratustra: os dados lançados e os dados que caem. Os dados lançados são a afirmação do acaso; os dados que caem são a afirmação da necessidade. O acaso é identificado ao múltiplo, ao caos, enquanto que a necessidade (ananke) é a própria afirmação do acaso, sua própria combinação e não sua eliminação do acaso. Em Heráclito esses dois momentos correspondem àphysis e ao logos. A afirmação não afirma o ser; é ela própria o ser. Enquanto afirmação primeira ela é devir, mas ela mesma é objeto também de outra afirmação. Assim, tomada em toda a sua extensão, a afirmação é dupla, é preciso uma segunda afirmação para que a afirmação seja ela própria afirmada9 Acaso e necessidade não se opõem, combinam-se numa unidade complexa, sendo a necessidade uma reafirmação do próprio acaso. Enquanto tal, ela é uma repetição diferencial - este é o sentido do eterno retorno de Nietzsche. 

O trágico implica a repetição. Isto não faz, porém, com que o pensamento trágico opere sobre um "dado". O acaso não é o dado sobre o qual o trágico vai se constituir, já que o dado implica o ordenado, enquanto o acaso é anterior a qualquer or­dem. Poderíamos ainda supor que o primeiro momento do aca­so-trágico seria. marcado pelo inconsciente e que o segundo mo­mento assinalaria a passagem à consciência. Glement Rosset 10 nos mostra porém que o que o pensamento trágico se propõe fa­zer é passar o trágico não do inconsciente à consciência, mas do silêncio à palavra. O trágico é o que nos remete para além dos li­mites do discurso conceituai e o que silencia esse discurso. 

A concepção nietzschiana do trágico difere ainda da que nos oferece Schopenhauer, que o identifica com uma visão pes­simista do mundo. A repetição trágica de que nos fala Nietzsche nada tem a ver com o pessimismo, sendo mesmo sua negação, já que o pessimismo supõe uma natureza que aparece a ele como insatisfatória." O trágico de repetição, para Nietzsche, não pressupõe uma natureza - seja ela boa ou má. não se refere a uma culpa ou injustiça cósmica do tipo proclamado por Anaximandro, à qual temos que nos submeter numa expiação infindá­vel. Para o pensamento trágico, o homem não é culpado, não ca­rece de nada, não é definido pela falta: "O trágico se define pela cotidianidade e não pela exceção e pela catástrofe ( ... ). Não existem duas esferas de realidade - a trágica e a não trágica - mas dois modos de olhar (o trágico e o não trágico). 

Não se trata aqui de fazermos o inventário daquilo que se ropete de forma idêntica por oposição às repetições diferenciais, o nem mesmo de admitirmos que a repetição-reprodução perten­ce ao domínio da natureza, enquanto que a repetição diferencial pertence ao domínio do humano. Trata-se, acima de tudo, de deixar patente a diferença profunda que preside cada uma das concepções da repetição. · 

Foi partindo do fato de que a repetição-reprodução era possível dentro do domínio do humano, que J. B.- Watson, ao fundar o behaviorismo, descartou qualquer referência à interio­ridade do sujeito por considerá-la metodologicamente inútil. Pa­ra o behaviorisrno de Watson, "uma vez dado o estímulo, a psi­cologia deve predizer a resposta; ou inversamente, uma vez dada a resposta, a psicologia deve especificar a natureza do estimulo". Claro está que a partir desse ponto de vista, toda vez que só repetir o mesmo estímulo teremos a mesma resposta. No en­tanto, antes mesmo de findar o século XIX, esse associacionis­mo de tipo mecanicista já era alvo de severas críticas, sobretudo no que se referia à questão da repetição. Assim, William James recusava a possibilidade de um mesmo estado de consciência se repetir de maneira idêntica, pois cada sensação provoca uma mudança no cérebro e, portanto, para que um estado de consciência volte a se produzir uma segunda vez de forma idêntica, te­ria que se dar em um cérebro imutável. E somente de uma maneira artificial que essa repetição é possível, e mesmo assim é discutível. Os experimentos sobre o behavior são possíveis com animais dentro dos limites impostos pelas condições experimentais. São portanto abstratos. Transpor seus resultados para o domínio do humano é desconhecer que o homem fala, que pela linguagem ela opera uma metamorfose rio real, constituindo um mundo irredutível ao mundo animal. O mundo humano é o mundo do sentido, mundo que não é pensável fora da referência ao simbólico. Esta é a razão pela qual Jacques Lacan, em algum momento dos seus seminários, afirma que não há behavior hu­mano, mas ato humano, isto é, algo que se constitui como senti­do e que é indissociável da linguagem. Uma palavra, ou mesmo uma frase, quando repetida, não traz com ela a repetição do seu sentido. E a esse respeito, o conto de Borges "Pierre Menard, au­tor do Quixote" é exemplar.

Borges nos fala de Um certo Pierre Menard, que teria con­traído o misterioso dever de reconstruir literalmente o D. Qui­xote, de Cervantes. "Não queria compor outro Quixote - o que é fácil - mas o Quixote. Inútil acrescer que nunca visionou qualquer transcrição mecânica do original; não se propunha co­piá-lo. Sua admirável ambição era produzir páginas que coinci­dissem - palavra por palavra e linha por linha - com as de Mi­guel de Cervantes."16 Para tanto, o curioso romancista dedicou-se ao espanhol do século XVI 1, à fé católica, à guerra contra os mouros e ao esquecimento de tudo o que havia ocorrido entre os séculos XVII e XX. "Dedicou seus escrúpulos e vigílias a re­petir num idioma alheio um livro preexistente. Multiplicou os apontamentos; corrigiu tenazmente e rasgou milhares de páginas manuscritas." Resultou desse trabalho de anos e anos um texto rigorosamente igual ao de Cervantes, só que o de Pierre Menard "é quase infinitamente mais rico". E Borges propõe um cotejo entre os dois.Assim, no nono capítulo da primeira parte, Cervantes escreveu:


"( ... ) a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro." 


Pierre Menard, em compensação, escreveu: . 

"(. .. ) a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro." 


O primeiro texto, escreve Borges, redigido no século XVI 1 por Cervantes, "é um mero elogio retórico da história", em nada comparável ao de Menard. Este escreve que a história é mãe da verdade; "a idéia é espantosa". "Menard, contemporâneo de William James, não define a história como um indagação da rea­lidade, mas como sua origem. A verdade histórica, para ele, não é o que sucedeu; é o que pensamos que sucedeu. As cláusulas fi­nais exemplo e aviso do presente, advertência do futuro - são descaradamente pragmáticas." 

"Vívido também é o contraste dos estilos. O estilo arcai­zante de Menard - no fundo estrangeiro - padece de alguma afetação. Não assim o do precursor, que com desenfado maneja o espanhol corrente de sua época." Com ironia e corri humor, Borges prossegue o cotejo, que nunca seria excessivo reproduzir aqui, mas prefiro remeter o leitor ao próprio Borges. 

Imaginemos um poeta excêntrico e solitário, reescrevendo a Ilíada e a Odisséia, compondo verso por verso, escolhendo cui­dadosamente cada palavra para eliminá-las em seguida, por não estarem contidas no texto homérico. Repetição-reprodução que o gênio de Borges transforma em repetição diferencial. Será esse Pierre Menard nosso neurótico? O obsessivo de que nos fala Freud? Ou será ele a imagem do intelectual que persegue minu­ciosa e incansavelmente as indicações de pé de página do seu au­tor predileto - que Borges ironicamente chama de "precur­sor" -, procurando assim repetir seu percurso para reproduzir sua grande obra? Não é demais lembrar que "repetir" (do latim repetere) significa "tornar a dizer ou escrever", isto ê, algo que diz respeito à linguagem ou, num sentido mais amplo, aos atos humanos e não aos fenômenos naturais. 

Kierkegaard se dá conta, através de Constantino Constan­tius, que repetição não é reprodução, ou mesmo que a reproducão em se tratando de atos humanos é impossível. O que Cons­tantino não consegue saber é como a repetição se constitui. Sua tentativa, inevitavelmente malsucedida, era a de reproduzir a magia do acontecimento primeiro. O que lhe escapava era que a magia residia na própria repetição e não na reprodução mecânica de um acontecimento primeiro. A repetição implica o novo. 


A magia do conto de Borges não está na reprodução minuciosa do texto de Cervantes por parte de Pierre Menard, mas no novo que a narrativa de Borges faz surgir. E essa noção de que a repetição demanda o novo, o acaso, de que ela está voltada para o lúdico, é que vai se constituir num dos pontos centrais da análise empreendida por Lacan do conceito de repetição em Freud.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

KIERKEGAARD E A REPETIÇÃO - segundo Prof.Dr.Rogério Miranda de Almeida



KIERKEGAARD E A REPETIÇÃO


Não poderíamos deixar de incluir no itinerário que até agora pontilhamos a questão de como a repetição ou, mais exatamen­te, a retomada se apresenta na concepção do pensador solitário de Copenhague. Isto não significa, porém, que deveremos per­correr todas as obras de Kierkegaard - como aliás não o fize­mos com relação a Nietzsche e a Freud - para poder constatar como a repetição, através das vicissitudes da escrita, vale dizer, das suas rupturas, retomadas e reinterpretações, nelas se expri­me e delas se afirma enquanto impulsão fundamental do ser humano. Neste sentido, qualquer texto, enquanto espaço pelo qual se desenrolam a tensão e, por conseguinte, a satisfação e a insatisfação do desejo, já aponta para aquela dinâmica que na teoria de Freud se designa pela expressão compulsão à repetição e em Nietzsche se manifesta pela doutrina ou teoria do eterno re­torno. Assim, o nosso escopo visa tão-somente mostrar, a partir . do livro intitulado A repetição, como esta tendência, embora se­guindo uma perspectiva e um movimento próprios, se insere também no universo kierkegaardiano da interpretação, da ava­liação, da criação e da pluralidade de leituras que não cessam de se escrever e se re-escrever, mas na diferença. A nossa intenção, portanto, não é apresentar um "estudo" desse livro em particular nem demonstrar como o fenômeno da compulsão à repeti­ção se desdobra, nas suas modalidades múltiplas, através do corpus kierkegaardiano; esta tarefa requereria, de fato, uma obra à parte. E, mesmo se se considerasse a possibilidade de uma obra à parte, esta não deveria pretender exaurir todas as impli­cações que um tal fenômeno encerra, pois seria uma óbvia con­tradição querer lançar a última palavra sobre uma tendência cuja satisfação está, paradoxalmente, nas suas próprias insaciabili­dade e tensão infinitas. 

A repetição será, pois, não o nosso texto de referência prin­cipal, mas o pretexto que nos permitirá tecer algumas reflexões em torno da volta do mesmo em Kierkegaard. Esta é a razão pela qual não hesitaremos em recorrer a um ou outro texto do mes­mo autor, e mesmo de outros autores, que, direta ou indireta­mente, têm relação com a problemática do retorno. De modo particular, esperamos enfatizar de que maneira a compulsão à repetição, a angústia, a criação e o gozo que as acompanha se revelam como expressões de uma questão mais profunda ain­da, qual seja, a questão do sujeito e, em última instância, a do próprio desejo. 

Na verdade, embora as traduções existentes empreguem freqüentemente a palavra repetição para verter o título da obra homônima, a tradutora da mais recente versão francesa, Nelly Viallaneix, aduz razões etimológicas convincentes para funda­mentar a sua preferência pelo vocábulo retomada (reprise) em vez de repetição. Uma tradução mais antiga já havia surgido na Itália, em que o título empregado era igualmente A retomada (La ripresa, Milão, 1954). Quanto à versão francesa, a tradutora afirma, na "Advertência", que o termo gjentagelse é formado pelo prefixo gjen, que quer dizer "de novo", e por um substantivo forjado a partir do verbo at tage, que significa "tomar". O senti­do literal de gjentagelse é, pois, re-tomada', Aliás, se nos referirmos aos aspectos autobiográficos dessa e de outras obras - que são inegáveis, e que, ao se ocultarem por trás dos pseudô­nimos que Kierkegaard criou, manifestam ao mesmo tempo a ética e o método fundamental do seu autor - , veremos que o vocábulo se aplica de modo especial a esse texto, nó qual uma possível re-tomada das relações de Kierkegaard com a ex-noiva, Regina Olsen, é expressa na tentativa ideal de o jovem enamo­rado - principal personagem do livro - reatar com a sua ama­da. De resto, uma análise que desenvolve o autor na primeira parte do livro sobre a retomada de uma farsa no teatro de Ber­lim vem igualmente atestar a oportunidade de se utilizar este termo em vez de aquele outro, "repetição". É que, na linguagem do teatro, as repetições - que em português se designam pelo nome de "ensaios", nos quais se recita o mesmo texto para reforçar o mecanismo da memória - diferem essencialmente da retomada (,gjenoptagelse) da peça, que mostra, ao contrário, uma recriação ou representação renovada do mesmo texto e, no caso da música, uma execução re-atualizada ou re-vivida da peça musical. Assim, a "repetição" seria a semelhança na repro­dução da palavra ou do gesto, a esclerose do hábito, "o mesmo no mesmo", enquanto a "retomada" evoca, sobretudo, um se­gundo começo, uma nova vida e, por conseguinte, uma nova criação e uma "reconciliação", pois a "reconciliação" - afirma Kierkegaard - é a retomada no seu sentido mais eminente e mais radical. É sempre o mesmo "eu" que retorna, mas enquan­to "outro", um "outro" que se renova, se refaz e se modela a cada instante, a cada final e a cada recomeço. 

Recordemo-nos do que dissemos acima, no início do Capí­tulo II, ao analisarmos a compulsão a repetir o novo nos textos de Nietzsche. Lá, igualmente, há uma insistência sobre a impos­sibilidade de qµe duas coisas venham a repetir-se de modo absolu­tamente idêntico. Mas enquanto Kierkegaard fala de repetição (repetition) para designar a degeneração da retomada num gesto, numa palavra ou numa atitude puramente mecânica, Nietzsche, que, nos textos analisados, se move num plano cosmológico e biológico, refere-se - embora empregando o substantivo Wieder­holung e o verbo sich wiederholen - à impossibilidade de uma repro­dução do idêntico ou do etwas Gleiches entre os elementos constitutivos do mundo fisico-biológico. Uma tal reprodução seria, antes de tudo, impossível de demonstrar, pois para que duas coisas fossem absolutamente idênticas teriam também de ter tido uma gênese absoluta e necessariamente idêntica. O que significa que se teria de remontar até a mais remota eternidade, tarefa não somente impossível, mas, para sermos honestos, inútil. Que se trate, portanto, da retomada em Kierkegaard ou da repetição em Nietzsche e em Freud, o que finalmente está em jogo é a questão do sujeito ou do desejo na sua eterna satisfação­ insatisfação, no seu eterno superar-se e começar de novo. 

É certo que, fora da Dinamarca, as idéias de Kierkegaard só começaram a tornar-se conhecidas na Europa a partir do século XX. E mesmo na primeira década do século XX não existiam ain­da senão traduções esporádicas, feitas por indivíduos isolados. É o que atesta o teólogo luterano Paul Tillich ao descrever, com entu­siasmo, os primeiros contatos que ele e outros estudantes de teo­logia da Universidade de Halle travaram, nos anos 1905-1907, com o até então desconhecido autor de Temor e tremor', Dele também Nietzsche ouvira falar, pelo amigo George Brandes, somente · em 1888, ou seja, no último ano da sua vida produtiva, e quando era tarde demais para adquirir as obras do dinamarquês 4. Em Freud não se encontra menção alguma do nome de Kierkegaard. Mas a questão principal não reside em indagar se Nietzsche e Freud te­riam ou não tomado conhecimento da obra do inventor do "salto da fé". 

O que nos interessa em primeiro lugar neste estudo é pôr em relevo como a experiência da repetição se apresenta neste três pensadores e, mais exatamente, como este fenômeno aponta para uma tendência mais profunda, mais elementar e originária, que ê a compulsão à repetição, ela mesma expressão da luta que, sem cessar, travam entre si as pulsões de vida e de morte e da qual derivam tanto prazer como desprazer, tanto alegria como dor, tanto volúpia como sofrimento, tanto construção como destruição e, em suma, tanto angústia como gozo. Mas como a repetição ou, mais precisamente, a retomada se desenvolve em Kierkegaard? Em que aspectos ela difere do eterno retorno nietzschiano e da compulsão à repetição elaborada por Freud? 

Reminiscência e retomada 

Com efeito, Kierkegaard, por intermédio do seu porta-voz, Constantin Constantius, inicia o "pequeno livro" com a questão da concepção do movimento entre os gregos e, mais exata­mente, da negação da sua realidade por parte dos filósofo, eleáticos. Essa evocação, já na abertura de A retomada, é tanto mais oportuna quando se sabe que não se pode pensar o movi­menta sem o tempo, e vice-versa. Já nos pré-socráticos o tempo era considerado como a ordem mensurável do movimento. Assim, segundo Aristóteles, os pitagóricos o definiam como "a esfera que tudo abraça"5 No Timeu (37 d), Platão dirá que o tempo é "a imagem móvel da eternidade". Já o próprio Aristóteles, partindo de um plano evidentemente empírico, chega à seguinte conclusão: "Quando, ao contrário, percebemos o anterior e o posterior, dizemos então que existe o tempo, poís eis o que entendemos por tempo: o número do movimento segundo o anterior e o posterior'". 

Os eleatas, todavia, negavam a realidade do movimento e, segundo a tradição, a que também Kierkegaard se refere, Dióge­nes contentou-se em silenciosamente dar alguns passos para fren­te e para trás pensando assim haver suficientemente refutado os seus oponentes. Estamos na Atenas dos séculos VI e V antes da era cristã. Segundo o testemunho de Platão (Carta 7), o ambiente político do século V é marcado pelo ceticismo em que se enfren­tam megáricos, cínicos, cirenaicos e sofistas ao tentar resolver os impasses político-lingüísticos deixados pelos eleatas, que tinham Parmênides como chefe de fila. Ao destronar as velhas teogonias e cosmogonias que, fantasticamente, tentavam explicar as ori­gens dos deuses e do mundo, assim como as peripécias divinas que nele se tramavam, esses filósofos construíram no seu lugar uma ontologia que julgavam ser apta a resolver o problema do devir, da mudança e da multiplicidade. O resultado desse novo pensamento foi, por um lado, a rejeição do movimento e da pluralidade oriundos do engano dos nossos sentidos que - se­gundo os eleatas - captam tão-somente as contradições da aparência. 

Por outro lado, porém, eram salientados os conceitos de unidade e imutabilidade como as características essenciais do Ser ou, melhor, como os fundamentos únicos e últimos da lei que rege a realidade e cuja tradução é, precisamente, o logos ou o discurso racional", Num tal universo, em que o Ser é pensado como uno e imóvel, como o todo e o mesmo, sobra pouco ou nenhum espa­ço para a retomada. Para Kierkegaard esta se apresenta, historicamente, sob duas modalidades principais. Em primeiro lugar ela se exprimia, para os gregos, sob a forma da reminiscência na medida em que, como é o caso em Platão, todo conhecimento ou todo processo que emprega a ciência para atingir as essências inteligíveis não é senão um re-lembrar-se e, mais exatamente, um te-lembrar-se pelo diálogo. É o que se pode encontrar no Mênon, no qual Sócrates tenta mostrar ao seu interlocutor, Mênon, que se a virtude for um saber, ela poderá ser ensinada ou, o que vem a dar no mesmo, ela poderá ser objeto de reminiscência ou de anámnesis. Ora, mas enquanto a reminiscência se volta para o passado na tentativa de captar aquele "momento" ou elemento que, eternamente suspenso, viria a revelar-se como saber na sua abstração e inteligibilidade última, a retomada tal qual Kierke­gaard a entende é um movimento que, incessante e dinamica­mente, se desenvolve como abertura, potencialidade e possibili­dade de novas tarefas. Tanto a reminiscência como a retomada têm certamente o mesmo prefixo, mas ambas apontam para direções contrárias ou, para dizê-lo com Kierkegaard: retomada e reminiscência constituem um mesmo movimento, mas em direção oposta, pois aquilo de que se tem recordação já passou, é uma retomada para trás, enquanto a retomada propriamente dita é uma recordação voltada para frente. É abertura e recriação, ou re-novação do já vivido, do já experienciado e significado". Neste sentido - afirma o autor - a retomada é um conceito que marca decisivamente a nova filosofia, ou a filosofia moderna, que, segundo ele, considera o nosso comportamento e a nossa atitude fundamentais em face do mundo como uma constante retomada ou uma incessante tentativa para alcançar, conquistar e ultrapassar os diferentes graus ou estágios da vida. 

Leibniz e a retomada 

É importante lembrar que, ao falar da filosofia moderna, Kierkegaard está veladamente dirigindo um ataque contra He­gel, o qual não cessa de obsidiar o autor de Temor e tremor, pois ele aparece e reaparece, de maneira implícita ou explícita, em quase toda página da obra kierkegaardiana. Nós designamos este fenômeno, inspirados no nosso mestre Roland Sublon, sob a expressão: o paradoxo da exclusão interna. Com isto queremos significar que se supera o outro, se exclui o outro, se quebram as tábuas da lei ou, para falar psicanalíticamente, mata-se o pai, mas a partir de um mesmo movimento ou dentro do mesmo universo simbólico. Curiosamente, logo depois de referir-se à nova filosofia, Kierkegaard afirma, sem rodeios, que o único filósofo moderno em quem se encontra a intuição básica da retomada é G. W. Leibniz. Talvez o autor tenha em mente um texto da Teodicéia, parágrafo 360, em que, ao discorrer sobre a previdência de Deus, Leibniz faz a declaração seguinte: "Eis uma das regras do meu sistema da harmonia universal: o presente está prenhe do futuro e aquele que tudo vê, vê no que é aquilo que será. E mais ainda, provei conclusivamente que Deus vê em cada porção do universo todo o universo, e isso devido à perfei­ta conexão entre as coisas'v'', Esta afirmação está intimamente relacionada com a teoria leibniziana das mônadas. Mas o que é uma mônada? Ao tratar da substância nos Princípios de filosofia, ouMonadologi,a, Leibniz define a mónada, em grego monás, como sendo nada mais nada menos do que "uma substância simples que entra nos compostos - simples, isto é, sem partes"!'. As mônadas são, pois, as unidades mais elementares ou as subs­tâncias mais simples que compõem o universo. Elas se apresentam como "átomos espirituais" ou substâncias desprovidas de partes e de extensão, não-passíveis de desagregação, s:endo, por conseguinte, indivisíveis e eternas. Segundo Leibniz, só Deus pode criá-las ou destruí-las. Ademais, cada mônada é diversa uma da outra já que não se encontram na natureza dois seres perfeitamente idênticos. Elas se distinguem entre si pelas suas qualidades internas e pelas suas ações. Mas como isso ocorre, se toda diferença já pressupõe uma identidade ou, pelo menos, elementos comuns através dos quais se pode afirmar também a diferença? Todavia, Leibniz define as substâncias simples como "átomos espirituais", mundos autossuficientes, em s1i comple­tos e independentes um do outro. Sendo assim, corno justificar então a comunicação e a interconexão dos seres, as mudanças de estados, as diferenças, as ações recíprocas, em suma, a "har­monia universal"? 

Este fenômeno, ele o explica a partir da sua teoria da per­cepção e da appetitio, que significa "tendência para", e que não deve ser confundida com o conatus espinosiano. Com efeito, para Leibniz as atividades fundamentais das mônadas: são, além da appetitio, a percepção, que também se encontra nos animais e nas plantas, e a apercepção, que é própria somente do ser humano, na medida em que este reflete sobre as suas percep­ções ou delas tem consciência. Enquanto a percepção pode ser definida como a representação do composto, ou do q1ue é exter­no, pelo simples, a appetitio é a tendência, a força ou a impulsão que faz passar de uma percepção para outra. Assim, aw contrá­rio do conatus, que diz respeito ao esforço que exerce c:ada coisa para conservar-se no seu próprio ser, na appetitio se encontram, segundo Leibniz, os princípios responsáveis pelas mudanças e alterações que se desenvolvem através do universo''. Cada mônada possui um ponto de vista sobre o mundo e, por sua vez, reflete este mesmo mundo a partir de um determinado ângulo, mesmo quando as percepções são confusas ou não são totalmente claras. Elas se apresentam, em virtude da appetitio que opera a interconexão e relação entre as diversas percepções, como que um resumo, um compêndio, ou um "eterno e vivo espelho do universo". Essa concepção, em cujas dificuldades e aporias não pretendemos entrar - pois nos afastariam por demais do escopo principal destas reflexões - é, no entanto, rica de conseqüências, pelo que ela veio a influenciar muitas das teorias modernas relativas ao perspectivismo. Este se encontra expresso, por exemplo, no parágrafo 57 da Monadologia, no qual Leibniz afirma: "Assim como a mesma cidade, vista de diferentes direções, aparece completamente variada e, por assim dizer, multi­plicada perspectivamente, do mesmo modo acontece que, em virtude da infinita quantidade de substâncias simples, há como que tantos universos diferentes que, no entanto, são somente perspectivas sobre um único universo, o que corresponde aos diferentes pontos de vista de cada mónada?". 

Na verdade, a distinção entre sensação ou percepção e a autoconsciência enquanto movimento auto-reflexivo no homem já se encontra em Platão, nos estóicos e em Platino, e ela terá em Agostinho um amplo, sutil e original desenvolvimento". A ino­vação de Leibniz consiste em haver introduzido no seu sistema a teoria das mônadas, em havê-la elevado a um plano cósmico, extrapolando assim todos os limites do universo e chegando até ao seio do próprio Deus. Deus é, portanto, a unidade primitiva, a substância simples e originária a partir da qual todas as mônadas criadas ou derivadas são produzidas ou geradas como que por fulgurações contínuas". Daí podermos melhor entender o pará­grafo 360 da Teodicéia, acima citado, sobre a controvertida ques­tão da harmonia universal: "O presente está prenhe do futuro e aquele que tudo vê, vê no que é aquilo que será". Esta ideia devia ser especialmente estimada por Leibniz, pois ele a retomará, de maneira sintética, no parágrafo 22 da Monadologia: "E já que todo estado atual de uma substância simples é a consequência natural do seu estado anterior, o presente está prenhe do futuro?". As­sim, graças à perfeita conexão entre os seres, Deus contempla cm cada porção do universo o universo todo inteiro. E não só o universo na sua constituição e nos seus aspectos físicos, mas também no seu desenrolar temporal: o Criador possui simulta­neamente uma visão do passado, do presente e do futuro; ele pode tudo prever e tudo determinar, antecipando, desse modo, o que mudará e o que se repetirá. 

Não é difícil deduzir as implicações éticas que dessa con­cepção podem derivar. Contrariamente ao Deus do ocasiona­lismo, que pressupõe uma interferência contínua do Criador nos fenômenos intramundanos, o Deus de Leibniz se apresen­ta antes como um sábio arquiteto que, desde o início, harmoni­zou o conjunto das coisas criadas calculando o desenvolvimen­to de cada uma no seu devido tempo e espaço. De sorte que, no momento determinado em que as diferentes substâncias, atra­vés da appetitio e da percepção, se põem a agir umas sobre as outras, deverão necessariamente seguir-se as mudanças corres­pondentes àquelas ações. Esta doutrina, que simplificamos ao extremo ao tentar descrevê-la nos seus traços essenciais, Leib­niz a denomina: "harmonia preestabelecida". Com efeito, na sua Teodicéia, que data de 1710, e na qual ele revida passo a passo os golpes que lhe endereçara M. Bayle, vemos várias vezes o filósofo evocar as metáforas do arquiteto e do escultor. As­sim, no parágrafo 130: 

É verdade que Deus faz da matéria e do espírito o que bem lhe apraz, mas ele é como um bom escultor, que faz do seu bloco de mármore somente aquilo que julga ser o melhor. ( ... ) Deus faz da matéria a mais excelente de todas as máquinas possíveis, ele faz do espírito o mais excelente de todos os governos concebíveis e, aci­ma de tudo, estabelece para a união deles a mais perfeita de todas as harmonias; é o que se encontra no sistema que eu propus. 

Como podemos constatar, pouco ou nenhum espaço so­bra nesse cosmos para a liberdade da vontade humana, pois as criaturas, sendo uma vez por todas determinadas ou "regula­das" pelo Criador, tornam-se como que autômatos que devem mecanicamente seguir o movimento inscrito em todas as de­mais substâncias. É certo que a doutrina da "harmonia preesta­belecida" permitiu a Leibniz encontrar uma solução para o problema das relações entre corpo e alma, problema este que já fora levantado, ou retomado, por Descartes e aprofundado pelos ocasionalistas. De sorte que, em vez de perguntar-se se é a alma ou o corpo que age um sobre o outro, o sistema leibniziano desenvolve e realiza uma perfeita correspondência entre essas duas entidades em virtude da harmonia que reina entre todas as mônadas. Resta, no entanto, como acabamos de lembrar, a espinhosa questão da vontade, da liberdade e do livre-arbítrio. Como então solucionar e justificar este problema? 
Na mesma Monadologja, escrito póstumo de 1714 que re­presenta, juntamente com os Princípios da natureza e da graça, uma espécie de suma do pensamento leibniziano, o filósofo tenta sair dessa aporia fazendo um cotejo entre, de um lado, o espírito ou a alma comum e, de outro, a mente ou o espírito humano. Já se pode adivinhar o papel de superioridade que, nesse confronto, desempenhará o espírito humano com rela· ção ao espírito comum. Pois além das distinções que em outras passagens já havia desenvolvido, aqui ele volta a afirmar que os espíritos em geral se apresentam como "espelhos ou imagens do universo das criaturas", enquanto as mentes ou o espírito humano são, ainda por cima, imagens da própria divindade ou do autor da natureza. Isso os torna aptos a conhecer o sistema do universo e, também, a imitar algo desse mesmo sistema atra­vés das representações esquemáticas (echantillons architectoniques) que dele fazem. Afinal de contas, todo espírito humano se asse­melha a "uma pequena divindade no seu próprio reino?", Daí poderem esses espíritos entrar numa espécie de sociedade com Deus e poder também o Criador agir em relação a eles não como um inventor se comportaria diante da sua máquina nem como o mesmo Deus trataria as criaturas não-racionais, pois ele é para os seres dotados de razão aquilo que um príncipe deveria ser para os seus súditos e um pai para os seus filhos".
 
Ora, o que parecia encaminhar-se para uma solução do problema da liberdade da vontade humana terminou, ao con­trário, erigindo-se corno uma estrutura de poder ou uma escala de graus de domínio que manifestam uma relação de comando e obediência, de ordem e vassalagem, de interdito e resistência, pois não há relação. de poder que não comporte ao mesmo tempo tensão e desejo. Assim é a dialética do mestre e do escra­vo, do pai e do filho, de Deus e do povo de Israel. É que o sistema leibniziano é e resta hierárquico como todo sistema é hierárquico e totalitário nas suas pretensões e concretizações. Embora a razão ou o espírito humano participe da vida divina na medida em que a espelha ou a representa no seu mais alto grau, e não só a espelha eminentemente, mas também conhece o universo e dele imita algo através das representações que de-· senvolve, o seu lugar está no entanto, e de antemão, determina­do na interconexão das substâncias que gera a "harmonia prees­tabelecida". É interessante observar que, para justificar a condi­ção sobressalente que ocupa o espírito humano no universo das coisas criadas, Leibniz emprega não somente as metáforas do príncipe e do pai, mas também aquelas do monarca, do reino e do estado teocrático, que ele designa sob a expressão agostiniana de Cidade de Deus. Essa Cidade, ou essa "monarquia verdadeiramente universal, é o mundo moral dentro do mundo natural, a mais alta e mais divina das obras de Deus'?", Deste modo, à "perfeita harmonia" que havia estabelecido Leib­niz entre os dois reinos naturais, isto é, o reino das causas eficientes e o das causas finais, vem agora se ajuntar a harmonia que se instaura entre o reino físico da natureza e o reino moral da graça, "entre Deus considerado como o arquiteto do mecanismo do universo e Deus visto como o monarca da cidade divina do espírito". 

Depois dessas considerações, não pode deixar de causar­nos estranheza a declaração de Kierkegaard acima apontada, segundo a qual Leibniz fora o único filósofo moderno a ter o pressentimento da retomada22• É bem verdade que o autor não afirma ter Leibniz descoberto ou desenvolvido a teoria da reto­mada. O que, no entanto, ele reivindica para o pensador da Teodicéia é a prioridade no haver intuído ou pressentido esse conceito. Mas, não obstante o fato de Leibniz dele ter apenas vislumbrado os fundamentos e a importância para o seu siste­ma - o que já redunda numa descoberta não desprezível -, resta que, como pudemos constatar, a repetição tal qual se en­contra na Teodicéia e na Monadologia pouco, ou quase nada, tem a ver com a retomada elaborada pelo autor de Temor e tremor. 

Do cosmos ao indivíduo 


Certo, no sistema leibniziano da harmonia universal, em que as diferentes substâncias se concatenam umas às outras e agem umas sobre as outras através da percepção e da appetitio, o presente se afirma do futuro, ou "está prenhe do faturo", na medida em que ele é possibilidade, abertura, tendência e cons­tante atualização de potencialidades múltiplas. Por conseguin­te, em virtude da perfeita interconexão de todas as coisas, Deus que tudo vê, vê simultaneamente em cada criatura, em cada átomo e em cada partícula - por mais ínfima que seja - o desenrolar infinito de todas as demais substâncias, de todas as mônadas ou, o que dá no mesmo, do universo todo inteiro. Todas as repetições e diferenças que se efetuarão já se acham de antemão - mesmo que indistintamente representadas - inscritas no interior de cada mônada. Na mente do Criador, porém, elas se deixam perceber no seu mais alto grau de precisão e clareza ou, como íamos dizendo, os desdobramentos que se operarão a partir da mudança de perspectiva no interior de cada substância já se acham dados, melhor, já foram antecipados e determinados pela pre-ciência, ou pre-vidência, do arquiteto do universo. A visão de mundo que apresenta· Leibniz é, pois, contrariamente .à reminiscência grega e similarmente à retomada kierkegaardiana, voltada para o futuro e para as transformações das virtualidades que o presente encerra. Ambas apostam no devir, na sua dinâmica e nos seus desenvolvimentos infindos. 

Mas eis a diferença fundamental entre essas duas concep­ções. Enquanto em Leibniz a visão do presente e do futuro se desenrola segundo um plano cósmico, isto é, no seio de uma abrangência universal e obedecendo às leis da causa eficiente e da causa final, em Kierkegaard a retomada se refere antes de tudo ao indivíduo. E ao indivíduo considerado nas suas particularidade, singularidade, finitude e, paradoxalmente, nas suas possibilidades infinitas de decisão. Por isso, o indivíduo é na sua essência - se é que de essência se pode aqui falar - um ser angustiado. Se há um problema que atravessa toda a obra kierkegaardiana e obsidia o filósofo do começo até o fim, é o problema da finitude da existência e, conseqüentemente, de tudo aquilo que ela apresenta de desafio, de solicitação, de divisão, de laceração e possibilidades de superação que jamais cessam de terminar, porque nunca terminam de começar ou, mais exatamente, de recomeçar. 


A angústia, a retomada e a criação 
O conceito de angústia 

Somos, pois, e espontaneamente, transportados para o campo da liberdade, outro conceito que separa radicalmente as visões de Leibniz e de Kierkegaard quanto à retomada e às suas implicações. Com efeito, se o ser humano aparece na concepção kierkegaardiana como uma síntese do psíquico e do físico, resta que essa síntese seria impensável, ou incom­pleta, sem um terceiro elemento que os unisse. E esse elemen­to, que na verdade é uma força - e uma força hostil ao ho­mem, que, no entanto, dele faz parte essencial-, Kierkegaard o chama de espírito". No estado de inocência que, para Kier­kegaard, é o estado que antecede a transgressão do interdito e, por conseguinte, da culpa, o homem não é simplesmente animal, pois, se em qualquer momento da sua vida ele fosse meramente animal, não poderia jamais se tornar homem. Isto quer significar que o espírito nele está presente, mas como imediato, ou como espírito que sonha, e é nessa condição de presente e sonhador que ele se manifesta, de certa forma, como uma força hostil ao próprio homem. Esta força é hostil na medida em que está constantemente perturbando a relação entre a alma e o corpo, relação esta que tem a capacidade de persistir, mas não de resistir por si só, já que depende do espiríto para poder se manter enquanto relação. Em outros termos, essa relação persiste, mas à mercê das variações e vicissitudes 



do espírito, permanecendo assim como uma relação precária, prestes a romper-se ou a anular-se a qualquer momento. Por outro lado, o espírito se revela, ambivalentemente, como uma força amiga, pois é por seu intermédio que a relação se constitui e se mantém viva". Estamos, portanto, diante de um jogo indefinido de duas forças, ou de duas tendências, que Freud mais tarde designará sob os nomes de pulsões de vida e pulsões de morte, que Empédocles já considerava como o conflito eterno entre filia e neikos e Nietzsche subsumirá sob o conceito da vontade de potência. 

Pois, como já vimos no capítulo anterior, a vontade de potência em Nietzsche é ambígua na medida em que ela se exprime também como vontade de morte ou como tendência para aniquilar-se ou apagar-se no reino do inorgânico, do inanimado, do nada. Mas ela não deixa de ser e de permanecer aquilo que o seu nome indica: vontade de potência. Manifestando-se e se expandindo como relações de forças que lutam umas contra as outras e, ao mes­mo tempo, cooperam umas com as outras, elas nunca param de incluir-se, de separar-se e de superar-se mutuamente. Por isso nunca chegam a uma síntese ou Aujhebung terminal. 

Partindo de um outro nível de leitura quanto à análise que faz das forças operantes no homem, Kierkegaard observa e cons­tata, ele também, um eterno conflito na relação que mantém o espírito entre corpo e alma. Trata-se igualmente, como acenamos acima, de um jogo paradoxal de forças amigas e inimigas, de tendências que se opõem umas às outras, mas que, ao mes- · mo tempo, se pertencem mútua e radicalmente. De resto, tanto em Kierkegaard como em Empédocles, em Nietzsche e em Freud, essas forças não podem nem ser pensadas separadas umas das outras. Por isso Kierkegaard se interroga: Qual é então a rela­ção do homem com este poder ambíguo? Como o espírito se relaciona consigo mesmo e com a sua condição, ou seja, com esse movimento conflituoso que ele mesmo condiciona e, incessantemente, põe em marcha? A resposta, para Kierkegaard, não poderia ser outra senão esta: a relação do espírito se dá como angústia. Desembaraçar-se de si mesmo ele não pode; apreender-se, não consegue, pois se coloca como exterior a si mesmo; cair num entorpecimento vegetativo seria para o ho­mem o fim de todas as coisas, pois é enquanto espírito que ele se qualifica; fugir da angústia também não consegue, pois ele a ama; mas amá-la realmente lhe seria impossível, pois é justa­mente da angústia que ele tenta fugir. Com isso a inocência atingiu o seu paroxismo. Ela é e continua sendo ignorância, mas não no sentido de uma ignorância animalesca. Trata-se, ao inverso, de uma ignorância qualificada pelo espírito, e é por isso mesmo que a inocência se revela como angústia, porque a sua ignorância é ignorância diante do nada. 

Essa ambigüidade de forças e tendências que caracteriza o ser humano no mais profundo do seu ser, Kierkegaard resumiu-a numa formulação emblemática que, pela sua penetração e sua sutileza extraordinárias, resulta igualmente desconcertante e para­doxal: "A angústia é uma antipatia simpática e uma simpatia antipáti­ca''"'. Já os brutos não podem ter angústia, justamente porque, dada a sua própria natureza animal, não se qualificam como espí­rito, ou pelo espírito. É que lhes falta esse terceiro elemento que serve de elo, de ponte e de passagem responsável pela co-municação entre corpo e alma. Eis a razão pela qual os animais não conversam consigo mesmos, não refletem sobre si mesmos, nem tão pouco dia-togam com os seus semelhantes, atributo exclusivo da lingua­gem humana, pela mediação da palavra. Certo, não se pode negar que também os animais se comunicam entre si e que eles são aptos a formar um simbolismo que lhes permite sobreviver quan­do juntos em sociedade. Mas essa comunicação se dá, como dirá Émile Benveniste ao se referir ao comportamento das abelhas, por meio de um "código de sinais" que encerram conteúdos fixos e mensagens invariáveis e que, pela relação a uma situação única, indicam a natureza indecomponível do enunciado e, por conseguinte, a sua transmissão unilateral".

Esta postagem trás um trecho do livro do ALMEIDA, Rogério Miranda de, no capitulo final o livro aborta o conceito da repetição em kierkergaard encontra-se nas ,páginas187 a 232.
Por respeitar diretos autorais não foi postado o capitulo inteiro do livro. mas um trecho deste capitulo.


ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e Freud: eterno retorno e compulsão à repetição. São Paulo: Loyola, 2005. 236 p. (Leituras filosóficas).


Que é Rogério Miranda de Almeida?

"Rogério Miranda de Almeida é um filósofo, teólogo, escritor e professor universitário". Wikipédia


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