Benedito José Viana da Costa Nunes (1929-2011) foi um filósofo, professor, crítico de arte e escritor brasileiro. Foi um dos fundadores da Faculdade de Filosofia do Pará, depois incorporada à Universidade Federal do Pará, e da Academia Brasileira de Filosofia.
Páginas:53-73
O pensador Solitário
Soren Kierkegaard (1813-1855), que se opôs a Hegel e à ideia de sistema, no momento em que o hegelianismo era filosofia oficial, foi um desses pensadores solitários, em completa discordância com a época em que viveu. Pastor evangélico luterano, pregador em Copenhague, Kierkegaard foi um teólogo insatisfeito com a teologia, um cristão dissidente, que se recusou a aceitar o cristianismo exterior e institucionalizado. Voltando-se para as fontes da espiritualidade cristã, encontrou ele no movimento de interiorização, que mana das Confissões de Santo Agostinho, a única forma legítima de experiência religiosa em harmonia com o cristianismo.
Apologia do Cristianismo
O pensamento do teólogo dinamarquês é, de certo modo, uma confissão. Intitulando-se "psicólogo humorista que faz experiencias" Kierkegaard captou, através de sua própria solidão, como já o fizera Pascal no séc. XVII, à margem do racionalismo cartesiano, as contradições da natureza humana que a razão não pode solucionar, e que geram o impulso da fé religiosa, qualitativamente novo, e incomparável a outro qualquer momento da vida espiritual.
Desse modo, o pensamento confessional de Kierkegaard desenvolveu-se como experiência das contradições da existência individual, ao ritmo da vida interior e subjetiva , porta aberta à conversão religiosa. Sob tal aspecto, as intenções do teólogo dinamarquês, idênticas às de Pascal, desembocam numa apologia do cristianismo. Sem defender, porém, com simples razões, a necessidade da fé , procurou Kierkegaard reconstituir, em suas nascentes espirituais e subjetivas, o movimento originário da crença religiosa. Foi essa atitude que o levou a opor-se ao sistema hegeliano.
A polêmica contra Hegel
Embora afirmando-se polemicamente contra o sistema de Hegel, Kierkegaard não desprezou a fenomenologia do espirito e a dialética, as quais dele receberam uma nova interpretação.
Em Hegel, a individualidade propriamente dita culmina na consciência de si, mediada pela razão,ingressa na etapa do espirito objetivo. A consciência de si, como sentimento moral, é impotente para fundamentar os imperativos éticos. Não pode haver moral puramente interior, subjetividade. A voz da consciência, a principio em conflito com as normas exteriores de conduta, é superada por essas próprias normas, que possuem caráter geral e se situam acima da individualidade. O individuo, na filosofia hegeliana, torna-se uma instância ética passiva, uma parcela de ordem moral que o envolve, um súdito de Estado. Alcançada a etapa do espirito objetivo, os momentos anteriores se anulam: o individual cede posto ao universal, terminando o conflito entre consciência de cada individuo e a organização civil e politica. A primeira contestação definida de Kierkegaard a Hegel foi negar que a evolução espiritual do homem se produz no sentido da superação da individualidade. O espiritual depende da afirmação da individualidade; é em função desta que nasce o caráter geral e objetivo atribuído por Hegel às formações superiores do espirito. Desse modo, kierkegaard opõe à dialética da fenomenologia do espirito um outra, resultante da vida individual e interior do homem , e que dependendo, a cada passo, de uma afirmação da consciência, não se processa com desenvolvimento inelutável.
Etapas da Personalidade
Três são as etapas do desenvolvimento da vida espiritual. acessíveis ao individuo por força de suas decisões pessoais: a estética, a ética e a religiosa. A estética é o domínio do temporal, do finito e da liberdade ilimitada. Predomina aqui o sentimento da existência como gozo. A afirmação da personalidade é então poder exclusivo do próprio homem, concedendo valor absoluto àquilo que é o imediato, instantâneo e efêmero. O Mundo e os homens, as coisas e os sentimentos, constituem, para aquele que vive no estágio, aspectos equivalentes de uma mesmo realidade mutável, extraordinariamente variada, sempre à disposição da sensibilidade. De experiência em experiencia, liga-se o homem estético ao imediato, concentra-se nas coisas fugazes, para delas extrair as expressões mais valiosas que não se repetem nunca e que, permanecendo na memorio sob a forma de lembranças, estimulam a imaginação a recriar o passado ou a distender-se na expectativa permanente de novas impressões fugazes."Detém-te, ó tu, que é belo". essa apóstrofe do fausto ao momento que se passa, exprime a atitude estética, desinteressada e contemplativa. Vivendo através da sensibilidade, o homem tenta fixar o eterno naquilo que é passageiro. Mas, por isso mesmo, o que há de eterno ou permanente não adquire, nessa fase, uma significação espiritual definitiva.
Identificar-se com as coisas, fruí-las até à exaustão, esgotar as particularidades do real, captar todo e qualquer aspecto sensível, como um dom singular que nos é oferecido pelo mundo, tudo isso cabe no ideal estético, que historicamente, depois de encarnado pelo epicurismo e pelo estoicismo, se transfere para o sentimento de amor à natureza, proclamando por Rousseau nos tempos modernos. Uma das constantes da poesia romântica, esse ideal inspira atitude panteísta do individuo, aspirando fundir a sua existência particular com a do Universo. Em suma,o individuo que contempla esteticamente o mundo, acredita-o e valoriza-o tal como ele é.
Identificado-se com todas as coisas, pois que todas são de igual valor para a sua experiencia versátil, o homem não deixa de ter consciência de si. Mas não aprofunda essa consciência e só se interessa pelo sue próprio Eu, enquanto sujeito de múltiplas experiencias, que mudam sem cessar, e cuja lei é o impulso de sua vida interior que inspira ao infinito. Finalmente, o homem estético, que gostaria de ultrapassar os limites da experiencia individual e de identificar-se com as causas gerais do Ser, insurge-se contra todas as limitações. Esse desejo é o momento da aspiração fáustica, da consciência demoníaca de poder. Não há para o individuo um destino a cumprir; é ele mesmo, na dissipação interior em que vive, a medida de todo destino. "Sua alma, diz Kierkegaard, é como um terreno onde crescem, com igual direito, todas as especie de ervas; seu ser repousa nessa variedade e ele não tem outro ser além desse"(Kierkegaard, Alternativa, pág.514, Gallimard, 8.ªed. Paris, 1949).
A Etapa Ética - Entre a simples afirmações estética da individualidade e o reconhecimento do homem, como sujeito ético, em função do Dever, há uma enorme distância. Para transpô-la, é preciso que o individuo se decida a limitar sua liberdade. É limitando-a que pode aderir a um destino superior. O estágio ético, em que esse destino se concretiza, é aquele que se resulta da escolha que o individuo faz de si mesmo, afirmando-se como universal humano. Os seus atos já não apresentam a oscilação indiferentes do estético. São atos decisivos, que encontram na existência individual o seu objeto de interesse máximo, inconfundível-lhe em sentido geral. O que é geral na ética (a obrigação, o dever) não absorve a individualidade, nem se lhe impõe do exterior: origina-se de uma decisão, decisão pela qual o homem assume livremente, como seu próprio destino, o destino comum da humanidade. Essa escolha é o ato gerador do Dever, a partir do qual o imperativo categórico passa a existir.
A individualidade subsiste no estágio ético. É dela que provem a decisão sobre o que é valioso, Decidindo para agir e agindo para ser, só então o individuo conquista a plena realidade que lhe faltava no estágio estético. Por meio de atos concretos de fidelidade, amor, renuncia, arrependimento, a vida individual, no estágio ético, são só está voltada para o universal, como tende livremente, a realiza-lo e a completar-se nele: "Encara-se geralmente e Ética como algo inteiramente abstrato e é por isso que ela é detestada em segredo. Quando se pensa que ela é estranha à personalidade, é difícil alguém entregar-se a ela, porque não se sabe ao certo o que disso resultará".(Op.cit.,pág. 535, idem).
O Salto Qualitativo
O movimento dialético que conduz do estético ao ético, não se opera, segundo Kierkegaard devido ao dinamismo lógico inerente ás contradições. As contradições condicionam a passagem de um a outro estágio. Porém o transito mesmo não se efetiva, como admite a dialética hegeliana, por efeito do influxo quase mágico da mediação. O movimento dialético é aqui um ato de liberdade, que kierkegaard denomina salto qualitativo: movimento súbito, perfazendo-se instantaneamente, à maneira de uma conversão. Dai a natureza qualitativa do salto. Mais uma vez em discordância com a dialética hegeliana, kierkegaard substitui a ideia de desenvolvimento pela mudança, e faz da mediação, e me vez uma síntese, como unidade do contrários, um espécie de conciliação dialética , na qual os contrários , permanecendo vivos, mutuamente se ativam e compõem a "harmonia por tensões opostas", de que falou Heráclito.
Assim a individualidade ganha, no estágio ético, uma nova dimensão. É através do geral que ela vence a indiferença caraterísticas do estágio estético. assumindo o Dever, sacrificando-se pelos outros, voltando-se à renúncia e à resignação, o individuo descobre-se interessando-se na sua própria existência.
O Estágio Religioso
O salto qualitativo, que é decisão e que, por ser decisão, é o ato de liberdade, instantaneamente consumado, pressupõe o interesse profundo, que nada tem de abstrato, pela existência. Interesse, consciência de existir, inquietação, sofrimento, aspiração do infinito, desejo de imortalidade, tudo isso integra o conceito de paixão (pathos), frequentemente utilizado por Kierkegaard. A paixão é a mola da dialética; sem ela, faltaria ao espírito o impulso e a elasticidade que o fazem saltar. Não há salto sem paixão, o que equivale a dizer que o movimento dialético, inseparável da paixão, nasce de um dinamismo anterior ao processo conceptual. "Todo movimento do infinito se realiza de modo apaixonado, explica Kierkegaard; a reflexão não é passível de produzir qualquer movimento. É o salto perpétuo na vida que explica o movimento. A mediação é uma quimera, que em Hegel,deve explicar todas as coisas, e que é ao mesmo tempo a única coisa que ele nunca tentou explicar".(S.Kierkegaard, Temor e Tremor, pág.60 Aubier, Ed. Motaigne, Paris, 1946).
Até onde a paixão pode levar o homem? Chegando ao estádio ético, o individuo parece ter alcançado a culminância de sua vida: impõe-se limites, age racionalmente, não quer o impossível e sabe o que quer. Em tudo, tal como Sócrates, age com perfeita lucidez; e é essa lucidez, justamente com a renúncia, que decorre da aceitação do Dever, e que pode atingir o grau de resignação infinita, o que lhe assegura uma certa consciência eterna. Sócrates, exemplo perfeito de homem ético, nada mais pode esperar da existência a não ser a continuidade da mesma atitude racional, que deu à sua vida o sentido de uma vocação. Eticamente, a paixão de Sócrates está esgotada e ele atingiu a plenitude.
Outros veios subterrâneos alimentava, a paixão e aguçam a contradição entre o infinito e o finito, e o temporal e o eterno, até que não se pode mais conceber um possibilidade racional de conciliar extremos, No entanto, a paixão os retoma, tentando uni-los. Seu objetivo já se situa num terreno estranho à ética, incompatível com a lucidez socrática, que representa a sabedoria puramente humana. Sob a força dessa máxima tensão, saltando um vez mais, o espirito vai cair no domínio religioso, cuja dialética é a fé. A Fé, para Kierkegaard, é o supremo paradoxo da vida. Seu objeto, o Deus vivo, que se revela aos homens, e que adota a força humana para salvá-los do pecado, é paradoxal. Implicando em admitir, ao mesmo tempo, a união do temporal com o eterno e a distância que separa o ser humano do ser humano do ser divino, a Fé, racionalmente falando, exige que creiamos no Absurdo, e que do Absurdo façamos a nossa esperança.
Aquele que crê aceita o Absurdo, ou melhor, transforma o Absurdo, que é irracional, na substância de sua propria vida; recusa o Entendimento, para submeter-se sob o império da mais a alta forma de paixão, à dialética da fé, " a mais sutil entre todas", porque é a dialética do paradoxo. O salto qualitativo que do ético leva ao religioso é como um salto vazio.Por isso o verdadeiro crente hesita antes de dá-lo. Reduzido à solidão, desligando da universidade moral já alcançada, o seu ato desprende-o da razão e constitui um escândalo para inteligencia. "Não posso empreender o movimento da fé, não posso fechar os olhos e atirar-me, de cabeça, cheio de confiança. no Absurdo;isso é impossível, porém não me glorio por esse fato".(Op.cit.,pág.43,idem.)
É assim que o crente deve falar quando ainda lhe falta paixão, quando seu pensamento, cioso de objetividade, ainda não aderiu à forma suprema da paixão do pensamento, que é o paradoxo. Mas se o seu interesse pela existência é infinito, ele acitara o primeiro grande paradoxo: que para Deus nada é impossível. A categoria de possibilidade é subvertida pela fé, cujo dom maior, no que concerne à pessoa do crente, é afiançar-lhe a realização de coisas impossíveis.Sócrates, o cavaleiro da Moral, não chegou tão longe nesse ponto quando Abraão, o cavaleiro da Fé, quando, submetendo-se à vontade de Deus, levou seu filho Isaac para o lugar do sacrifício,e o recuperou no mesmo instante em que deveria matá-lo. Abraão admitiu o paradoxo de que a sua submissão à vontade infinita de Deus lhe devolveria o filho, pelo caminho inverso do amor de Deus aos homens. Isaac recobrou a vida que parecia perdida. Salvou-o a fé exemplar de Abraão, que "após ter realizado o movimento do infinito, cumpre o finito".(Op.cit.,pág.51, idem)
O resultado desse movimento, produto do valor devolutivo da fé, é a espécie de paradoxo que Kierkegaard chama de repetição. Mas toda cristã esta constituída sobre paradoxos, os quais são culminância das contradições da existência: pecado/salvação, Deus/homem, finito/infinito, possivel/impossível. Que maior paradoxo do que o próprio advento do cristianismo, que é, ao mesmo tempo, fato histórico e momento sobrenatural?
O estágio religioso, que se situa acima de ético, é aquele em que a individualidade volta a possuir a importância sacrificada ao caráter universal do Dever.
Trata-se de uma recuperação dialética por meio da qual o individuo, realizando o salto qualitativo da Fé, se encontra a si mesmo no que tem de mais real: a sua natureza de existente. É como existente que ele se defronta com o absoluto: relacionamento instantâneo, que resume todos os paradoxo do cristianismo nesse despojamento total do existente diante de Deus bíblico, vivo e terrível, que é uma entidade pessoal, mas cujo amor não pode ser entendido se lhe aplicarmos o critério do amor humano.
O Absoluto é, para Kierkegaard, como foi para Hegel, o que há de mais concreto. Entretanto, o sentido do ser concreto dista muito daquele Espírito, aceito pela filosofia hegeliana, no qual se completa, sintetizando todas as mediações, a identidade do pensamento com o real. Em Kierkegaard, a dialética do espirito, que principia com a afirmação da individualidade, termina no plano do absoluto, que é também a do absoluto, objeto da fé, não acessível, à inteligência, senão sob a forma de paradoxo. Mas, nesse caso, o Absoluto é uma outra subjetividade vivida, imediata. Assim, sendo instantâneo e subjetivo esse relacionamento entre o homem e Deus que ocorre por obra da Fé, na intimidade do individuo que desceu ao mais profundo de si mesmo, pode-se dizer que Kierkegaard restabeleceu o valor da subjetividade ou da consciência individual, restabelecendo, igualmente , o valor do imediato que, para Hegel, é apenas o primeiro superável momento do Espírito.
Há no entanto, para Kierkegaard outra categoria da existência humana, mais fundamental que o desespero: a angústia, estudada em O Conceito de Angustia, uma simples investigação psicológica orientada para o problema dogmático do pecado original(1848).
A conceituação Kierkegaardiana de angústia é uma tentativa de concepção dialética do problema da queda e, consequentemente, da origem do pecado, no estado de inocência, que pressupõe a ignorância da distinção entre Bem e Mal, cometido a primeira falta, que o distanciou de Deus, contaminando a espécie? Não se poderia conceber o pecado como afirmação pura da liberdade. Se assim fosse, a liberdade seria um ato de rebeldia, de rompimento gratuito com Deus, o que contradiz a ideia da relação edênica inicial entre o Criador e a criatura. Mas também é inconcebível, pelos mesmos motivos, que o pecado tenha sido fruto ou da tentação ou da proibição: se da tentação, importaria em admitir que Satã seduziu o homem, se da proibição, resultaria que esta foi da parte de Deus, tão sedutora quanto a tentação da parte de Satã. Qualquer das duas hipóteses é incompatível com o postulado teológico da inocência primitiva.
Para tornar compreensível a passagem da inocência ao pecado, como movimento dialético, será preciso admitir-se a possibilidade só segundo existindo na realidade da primeira. Mas que é a possibilidade de falta senão um possivel ato de desobediência e, portanto, uma ação negativa, precisamente aquela que foi interditada? Tal ação não foi determinada por necessidade exterior ou compulsão interna. Nenhum fator propriamente dito, nenhuma causa produtiva, operou no cometimento do pecado original, o que equivale a dizer que a primeira falta resultou de uma possibilidade. No estado de inocência nada havia, a não ser o espirito, que pudesse determinar o homem a agir. Mas o espirito humano seria nesse estado, uma como projeção imaginária de si mesmo, sem conteúdo real, constituindo uma simples possibilidade.
Ora, a angústia, no sentido geral, dicionarizando, significa aflição ou ansiedade. Psicologicamente é um sentimento ambíguo: quem se angústia, sente-se atraído pela aflição que domina, e quer, ao mesmo, tempo, libertar-se dela. A vaga ansiedade manifesta no ânimo de correr aventuras, comum às crianças, e que , embora se traduza pela expectativa de "coisas monstruosas e enigmáticas", não tem um objeto definido, é angústia. Quem se angústia, não sabendo qual é a causa de seu estado de espirito, poderá dizer e mesmo que é por nada que se aflige. Essencialmente ambígua, a angústia,que Kierkegaard define como "antipatia simpatética e simpatia antipatética", cujo objeto, negativo, " é algo que não é nada", constitui a natureza do espírito humano no estado de inocência. "Nesse estado há paz e repouso,mas há ao mesmo tempo, outra coisa que não e guerra nem agitação - pois não há nada contra o que lutar. Que é isso, então? Nada. E que efeito produz? Nada. Produz angústia. O profundo mistério da inocência é ser angústia. O espírito projeta, como num sonho, a sua própria realidade; mas essa realidade é nada; a inocência vê sempre o nada diante de si"(Kierkegaard, O conceito de angústia, pág. 44, Espasa-Calpe, B.Aires, 1940).
A proibição divina equivaleria à possibilidade da falta, no estado de inocência. É a angústia que, concomitantemente, revela ao homem, nessas possibilidade, a existência de sua própria liberdade. Mas a distância imensa que há entre a inocência e o pecado, o abismo que vai da possibilidade à liberdade, só podem ser eliminados por um salto qualitativo, por um movimento irredutível e instantâneo, que se processa em meio de uma decisão angustiante: a queda.
Como se vê, a angústia é, para kierkegaard, a categoria fundamental da vida religiosa, enquanto origem e consequência do pecado. De um modo geral, porém, constitui ela o poder inerente à liberdade, ou antes a possibilidade mesma da liberdade. Sob esse aspecto, sem dúvida o mais importante do ponto de vista filosófico, trata-se do poder originário e negativo da subjetividade, categoria inalienável da existência humana. O conceito categoria inalienável da existência humana. O conceito de angústia aproxima-nos, pois, da noção de existência um dos temas básicos do pensamento filosófico atual.
Existência Individual - A vida Subjetiva
Não esquecemos que kierkegaard foi, antes de tudo, um teólogo. Pensador cristão, dedicou sua obra à redescoberta do cristianismo. É esse dado que devemos levar em conta na caraterização da vida subjetiva, feita por Kierkegaard, cujo pensamento é inseparável da experiência religiosa que lhe deu origem. Além de ter constituído ponto de relevo na polemica travada com Hegel, a importância fundamental que para ele a subjetividade assumiu, resultou do fato de as relações entre homem e Deus se produzirem no recesso da vida interior, subjetiva, no domínio privilegiado que o solitário de Copenhague denominou de existência.
As caraterística essenciais da vida subjetiva, segundo Kierkegaard, cabem numa expressão, que já conhecemos: consciência infeliz. O homem é desejo, inquietude e sofrimento. Tudo isso faz parte da condição humana e mortal, que Pascal, afastando-se completamente da ideia da felicidade que o racionalismo de Aristóteles e dos estoicos reputou fundamental, descreveu em seu Pensées. Do ponto de vista pascalino, a infelicidade não é um estado passageiro, resultante do desequilíbrio de nossas faculdades, quando lhes falta o controle racional. Trata-se de uma privação, que é permanente, de um desequilíbrio, que é intrínseco e constitutivo da natureza humana. Abrigando ao mesmo tempo grandeza e miséria , contrários que se alternam, e de cuja oposição resulta a consciência infeliz, a natureza humana é contraditória. Dividida, em conflito consigo mesma, movida pela inquietação que a devora, entregue à ação, dispersa no objetos exteriores, ela vive mais do desejo do que da satisfação; e esse movimento, que deveria satisfazê-la e completá-la, e que só faz intensificar a inquietude e o desejo, é o conteúdo do Desespero, categoria da existência humana para Kierkegaard.
O desespero Humano (1849), como é mais conhecido o Tratado do Desespero (A doença mortal), inexcedível quanto à argúcia psicológica, exemplifica bem o sentido da dialética em Kierkegaard. A consciência infeliz não pode ser ultrapassada, isto é, ela não pode, por si mesma, sintetizar as suas contradições, porque o homem, "síntese do infinito e do finito, do temporal e do eterno, de liberdade e de necessidade, é, em suma, uma síntese".(O desespero humano, pág. 34, livr.Tavares Martins, Pôrto,1947). A consciência infeliz é a consciência de si ou consciência do próprio Eu, emergindo de uma relação de contrários, de cuja oposição nasce a inquietude que mobiliza o desespero. (cf. Intr.,II,2.) O desespero, que canaliza essa inquietude geral,tem um objeto específico: o próprio Eu. è do Eu que desesperarmos. Desesperar é insurgirmos-nos contra o nosso Eu, o que se verifica tanto quanto estamos empanhados em encontrar a verdadeira substância daquele que possuirmos, como quando procuramos conquistar um novo, Eu, que projetamos ser. No primeiro caso, desejaríamos extinguir as contradições interiores. Mas como tais contradições são próprias da consciência, desejar um Eu sem conflitos, estável e substancial, é o mesmo que querer outro Eu. Desse modo, o desespero é sempre a manifesta intenção de radical mudança do ser que é.
O homem não desespera por alguma coisa e sim de si mesmo. "desesperar de si próprio, querer, desesperado, liberta-se de si próprio, tal é a fórmula de todo desespero.(Op..cit.,pág.44, idem.)
O homem não desespera por alguma coisa e sim de si mesmo. "desesperar de si próprio, querer, desesperado, liberta-se de si próprio, tal é a fórmula de todo desespero.(Op..cit.,pág.44, idem.)
Angústia
A conceituação Kierkegaardiana de angústia é uma tentativa de concepção dialética do problema da queda e, consequentemente, da origem do pecado, no estado de inocência, que pressupõe a ignorância da distinção entre Bem e Mal, cometido a primeira falta, que o distanciou de Deus, contaminando a espécie? Não se poderia conceber o pecado como afirmação pura da liberdade. Se assim fosse, a liberdade seria um ato de rebeldia, de rompimento gratuito com Deus, o que contradiz a ideia da relação edênica inicial entre o Criador e a criatura. Mas também é inconcebível, pelos mesmos motivos, que o pecado tenha sido fruto ou da tentação ou da proibição: se da tentação, importaria em admitir que Satã seduziu o homem, se da proibição, resultaria que esta foi da parte de Deus, tão sedutora quanto a tentação da parte de Satã. Qualquer das duas hipóteses é incompatível com o postulado teológico da inocência primitiva.
Para tornar compreensível a passagem da inocência ao pecado, como movimento dialético, será preciso admitir-se a possibilidade só segundo existindo na realidade da primeira. Mas que é a possibilidade de falta senão um possivel ato de desobediência e, portanto, uma ação negativa, precisamente aquela que foi interditada? Tal ação não foi determinada por necessidade exterior ou compulsão interna. Nenhum fator propriamente dito, nenhuma causa produtiva, operou no cometimento do pecado original, o que equivale a dizer que a primeira falta resultou de uma possibilidade. No estado de inocência nada havia, a não ser o espirito, que pudesse determinar o homem a agir. Mas o espirito humano seria nesse estado, uma como projeção imaginária de si mesmo, sem conteúdo real, constituindo uma simples possibilidade.
Ora, a angústia, no sentido geral, dicionarizando, significa aflição ou ansiedade. Psicologicamente é um sentimento ambíguo: quem se angústia, sente-se atraído pela aflição que domina, e quer, ao mesmo, tempo, libertar-se dela. A vaga ansiedade manifesta no ânimo de correr aventuras, comum às crianças, e que , embora se traduza pela expectativa de "coisas monstruosas e enigmáticas", não tem um objeto definido, é angústia. Quem se angústia, não sabendo qual é a causa de seu estado de espirito, poderá dizer e mesmo que é por nada que se aflige. Essencialmente ambígua, a angústia,que Kierkegaard define como "antipatia simpatética e simpatia antipatética", cujo objeto, negativo, " é algo que não é nada", constitui a natureza do espírito humano no estado de inocência. "Nesse estado há paz e repouso,mas há ao mesmo tempo, outra coisa que não e guerra nem agitação - pois não há nada contra o que lutar. Que é isso, então? Nada. E que efeito produz? Nada. Produz angústia. O profundo mistério da inocência é ser angústia. O espírito projeta, como num sonho, a sua própria realidade; mas essa realidade é nada; a inocência vê sempre o nada diante de si"(Kierkegaard, O conceito de angústia, pág. 44, Espasa-Calpe, B.Aires, 1940).
A proibição divina equivaleria à possibilidade da falta, no estado de inocência. É a angústia que, concomitantemente, revela ao homem, nessas possibilidade, a existência de sua própria liberdade. Mas a distância imensa que há entre a inocência e o pecado, o abismo que vai da possibilidade à liberdade, só podem ser eliminados por um salto qualitativo, por um movimento irredutível e instantâneo, que se processa em meio de uma decisão angustiante: a queda.
Como se vê, a angústia é, para kierkegaard, a categoria fundamental da vida religiosa, enquanto origem e consequência do pecado. De um modo geral, porém, constitui ela o poder inerente à liberdade, ou antes a possibilidade mesma da liberdade. Sob esse aspecto, sem dúvida o mais importante do ponto de vista filosófico, trata-se do poder originário e negativo da subjetividade, categoria inalienável da existência humana. O conceito categoria inalienável da existência humana. O conceito de angústia aproxima-nos, pois, da noção de existência um dos temas básicos do pensamento filosófico atual.
A Existência
A palavra existência, derivada, de existentia, tem, precisamente, na termologia filosófica tradicional,sentido oposto a essência (essentia). Ambos os vocábulos estão vinculados ao sentido mais geral de Ser (esse). Quando concebemos algo, pensando o Ser no sentido geral da palavra, o que visamos é uma natureza determinada idêntica a si mesma - a essência - que pode ou não existir. Tal era o princípio comum às correntes da escolástica e da filosofia árabe do séc. XII. (cf.Intr,. 2,1.) Alguns filósofos chegaram até a defender a tese que a existência é um acidente relativamente à essência(Avicena). Existir - pensavam os escolásticos - é ser produzido, é fazer-se atual mediante causas(ex alio sistere). Determinação concreta, contingente, a existência não corresponde ao primeiro sentido do Ser e geral (esse). Muito mais tarde, refletindo toda essa evolução do problema , Kant viu na existência a propria categoria da realidade, isto é, o modo pelo qual no nosso pensamento afirma que para cada intuição sensível dos fenômenos, situados no tempo, corresponde algo realmente dado.Assim concebida, a existência não é mais um domínio efetivo do Ser, correlativo à essência mas a simples posição dos objetos no tempo. Portanto, dizer que existem coisas é, para Kant, formular um juízo de realidade. A existência mesma não seria um atributo ou predicado, e dela nada se pode predicar.
Independente da realidade,que é um categoria do pensamento, aquilo que segundo a concepção kantiana, se poderia chamar de existência pura, como o ato de ser ou de existir, é simples posição. Inssucetivel de receber a forma de um Conceito, ela ficaria, dessa maneira, à margem do conhecimento verdadeiro. Kant limitou-se a reconhecer a irredutibilidade da existência pura aos conceitos do pensamento. Mas, dada a função exclusiva, de Critica do conhecimento raciona, que Kant atribui à filosofia, essa noção de existência, como algo efetivamente dado, e que constitui um realidade originária - com a qual o pensamento se defronta, sem poder sintetizá-la - não poderia ter, de seu ponto de vista, senão valor residual.
Existência e Pensamento
Do ponto de vista de Kierkegaard a existência possui valor
filosófico fundamental devido a essa irredutibilidade ao pensamento racional. Se
for impossível sintetiza-la, submetendo-a a ordem dos conceitos que
caracterizam o conhecimento objeto, e às mediações dialéticas que suprimem o
imediato, é muito mais impossível, ainda, abstraí-la, tentando-se neutralizar a
sua presença iniludível. Mas será dizer quase nada acerca do conteúdo da noção
Kierkegaardiana de existência o afirmar-se que Eça significa, de um modo geral,
a posição das coisas ou dos objetos que existem.
Essa existência geral dos seres, concebida pelo pensamento,
é apenas um ideia abstrata. Assim. Podemos conceber a existência de uma coisa
como a atualidade que ela tem, com aquilo que a faz possuir esta ou aquela
forma. Por mais que enumeremos outros aspectos, o ser existente será sempre,
para mim, um objeto de pensamento, o qual só por meio de ideias pode ser captado.
É algo que conheço mediante uma relação exterior, conceptual, abstrata. Essa
existência objetiva tem a realidade própria dos fatos exteriores que o pensamento
abrange. Nesse sentido, a existência traduz um dado geral, inteligível, as
deixa de ser uma realidade para mim.
A existência que não podemos abstrair, e que se nos oferece
como posição no tempo, realidade imediata e vir-a-ser,
à qual nos encontramos vinculados por uma relação interior que nenhuma síntese
conceptual pode eliminar ou superar, é a
nossa própria existência, Eis a primeira realidade para Kierkegaard, a
realidade com que sempre temos que contar: a existência individual, subjetiva e
temporal que somos. Grande é a distância que há entre essa concepção e a
tradicional. A existência se interioriza e individualiza, passando a significar
a posição do sujeito existente. Mas
ainda: é o interesse permanente desse sujeito, a ele se impondo como realidade
imediata, que precede qualquer outra, inclusive a que o conhecimento objetivo
atinge. Ora, a existência (e já empregaremos a palavra, daqui por diante no
sentido Kierkegaadiano) que não é objeto, escapa à órbita desse conhecimento
objetivo, formado por conceitos, adequados à capacidade abstrata e
generalizadora do pensamento. Ela é, por assim dizer, pré-objetiva. “Chama-se a
existência um acessório ou um eterno prius,
ela jamais poderá ser provada”. (S.Kierkegaard,Migalhas Filosóficas,pág.101,Éditions
Du livre français, Paris, 1947.) Daí podermos também dizer que a existência,
além de pré-objetiva, é pré-racional.
Conhecimento da Existência
Não se diga, porém que ela é incognoscível. Ao contrário,
dada a imediatidade, para o homem, entre ser e existir, o conhecimento que
temos da existência é fundamental, prioritário. O homem se conhece a si mesmo
como existente. Esse conhecimento, inseparável da experiência individual, não
transforma a existência num objeto exterior ao sujeito que conhece.
Nesse novo domínio, o conhecimento surge de uma reflexão da existência
sobre si mesma. Estamos longe do
idealismo, que procurou justamente, como nos mostra a filosofia cartesiana,
absorver a existência no conhecimento. A primeira certeza para Descartes –
penso, logo existo – expressou lapidarmente esse propósito. Na verdade,
pretendo deduzir a existência a partir do pensamento, o que Descartes encontrou
foi, de fato, a existência abstrata do próprio pensamento. Mas o abstrato, como
diz Kierkegaard, não existe. Descartes, suprindo o momento da existência,
abstraindo-se de sua realidade de ser existente, apenas consegui formular uma
tautologia: penso,logo existo quer dizer
penso logo penso. “Concluir do pensamento a existência é assim uma
contradição, pois que o pensamento retira a existência da realidade, e, ao
pensá-la, suprime-a e converte-a em possível”. (S.Kierkegaard, Post-Scriptum às migalhas
filosóficas, pág, 212, Gallimard, 9.ªed.,Paris (1949.)
A contradição a que Kierkegaard se refere, nessa passagem,
revela-nos uma posição fundamental, que pertence à dialética da existência
humana, e que é semelhante à que se verifica com o movimento. Se tentamos
determinar conceptualmente a existência e o movimento, escapa-nos o que ambos têm
real, e tanto a primeira como o segundo se apresentam sob a forma de possibilidade.
Dá-se, porém, que esse resultado negativo é apenas o primeiro passo da
dialética. Sob outro aspecto, a existência, que “não se deixa pensar”, é
simultânea ao pensamento: “aquele que pensa, existe manifestando-se, pois, a
existência, ao mesmo tempo em que o pensamento”.
Entre esses dois termos opostos, existência e pensamento, que
parecem inconciliáveis, é a própria oposição, é o conflito mesmo que os une e
que os separa, é o movimento de um no outro, o único nexo essencial e completo.
Mas, para que a existência se mantenha imune ao bloqueio da abstração e não se
torne mera possibilidade ou ideia, é preciso que o pensamento não se desligue
da paixão, e que pela paixão vá buscar impulso na existência.
Que é a paixão, para Kierkegaard, senão os interesses do ser
humano pela sua própria existência? Voltamos assim à paixão de que tratamos no
começo. Sendo a paixão, para Kierkegaard, o pináculo da subjetividade, a existência
real, que ao pensamento se liga, é a existência subjetiva, aquela com que o
individuo se preocupa quando toma consciência
de si.
Podemos, agora, a guisa de conclusão, esquematizar,
utilizando expressões textuais do pensador, respigadas, aqui e ali, de seu
Post-Scrpitum, os pontos básicos da concepção existencial de Kierkegaard: 1) –
Existir, se não endentemos por isso um simulacro de existência, é coisa que não
se pode fazer sem paixão”( pág.208);2) – “Todos os problemas da existência são
passionais, pois tornam-nos apaixonados quando temos consciência de existir”(pág.236);3)-
“ A realidade é o que interessa, porque dentro dela que existimos”(pág.229);4)-
“ A realidade é um interesse entre a
unidade abstrata hipotética do pensamento e o ser” (pág.210);5) – “ A abstração
é desinteressada, mas a existência é o supremo interesse daquele que existe”(pág.209);6)
– “ A única realidade que há para um homem existente é a sua própria realidade ética...”
(pág.221);7) - “ O conhecimento
essencial diz respeito à existência; por outras palavras, o conhecimento que se
refere essencialmente à existência é o único conhecimento essencial”(pág.130).
Fixam os pontos acima as matrizes da filosofia da existência.
Teremos que acrescentar a essas teses, para que fiquemos com a ideia mais
completa possível da concepção Kierkegaardiana, alguns enunciados característicos
sobre o clássico problema da verdade. Torna-se claro, que do ponto de vista da
existência, o conceito da verdade com “adaequatio
rei et intellectus” é insuficiente e até mesmo falso. Sem paixão, o que é
verdadeiro apenas objetivamente se desvincula da verdade primordial, que
pressupõe a relação subjetiva do individuo consigo mesmo.
Desse modo, o problema da verdade não pode ser desvinculado
daquilo que antes chamamos vida
individual e subjetiva. A adequação do pensamento ao Ser só pode
realizar-se por intermédio do movimento subjetivo da existência, que é a
apropriação da verdade. Uma verdade que não é minha, da qual não me apropriei,
não é realmente verdadeira. Faltar-lhe-ia o substrato passional da inquietação,
que se relaciona através do movimento dialético e temporal da existência como
vir-a-ser, o individuo e sua subjetividade com o infinito. Compreende-se, pois,
de acordo com essa perspectiva, a afirmação tantas vezes repetida por
Kierkegaard: “A subjetividade é a verdade, a subjetividade é a realidade”.
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