terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Kierkegaard: a dupla reflexão

Existencialismo  -  COLETTE, Jacques p.22-25.

Kierkegaard: a dupla reflexão

“Existir em verdade, portanto penetrar sua existência com consciência, ao mesmo tempo eternamente, por assim dizer, muito além dela, no entanto presente nela, no entanto no devir, eis o que é verdadeiramente difícil.” É nisso que consiste a relação absoluta pela qual a existência se torna imensamente tensa, porque ela precisa efetuar constantemente um duplo movimento “. Esse movimento é fonte de angustia, pois ele consiste em ir em direção ao incondicionado, não para nele se perder, mas para imensamente voltar e reintegrar o campo do relativo e do condicionado. O estatuto da reflexão se revela assim em sua dualidade: como a existência mesma, a reflexão se desdobra na incerteza entre necessidade e possibilidade, entre passado e futuro, entre passividade e atividade entre finito e infinito. “O pensador subjetivo é dialético em direção do existencial; ele é habitado pela paixão do pensamento que lhe permite manter firme a disjunção qualitativa, essa disjunção absoluta em relação à qual  a obra da meditação , esse levantamento das metas relativas permanece um coisa subalterna.
            O ser-si é reflexão abstrata que na lógica hegeliana (§123, define a existência como unidade de reflexão em si e da reflexão no outro. entre esses dois momentos, intervém o que impede precisamente que se realize a unidade, ou seja, o tempo. O pensamento puro pode pensar o movimento já advindo, o tempo, passado, a existência finda, mas não o que permanece abstratamente inconcebível, o tempo, vivido do sujeito real,existente no sentido de ex-sistere, aquilo que o fundou preexiste a ele e permanece além, sem que se possa articular definitivamente o que funda  e o que é fundado. No tempo real, a disjunção nunca é superada, a existência temporal é o recife que faz naufragar o pensamento puro segundo o qual o conceito manifestaria seu poder até sobre o tempo. Subjetivamente vivida, a paixão pelo infinito não tem o infinito como conteúdo (como aquilo que – quod), ela só se relaciona a ele segundo a modalidade (quo-modo) da decisão do instante. “ mas como , que é subjetivamente  acentuado, é ao mesmo tempo, precisamente porque o sujeito é existente , dialético em relação ao tempo.
            Vale dizer que é impossível a retomada de si na eternidade da reminiscência, pois reflexão e linguagem não tem outro elemento a não ser o tempo. A reflexão não é nem simples nem absoluta, ela é dupla. Com a relação absoluta nunca se chega ao fim, o trabalho da apropriação e, nessa matéria, não se trata de comunicação direta de resultados, não há efusão imediata. O duplo movimento (infinito/finito), assim como a comunicação (apropriação interiorizante/desapropriação exteriorizante), tem a ver com aquele ritmo discordante evocado também pela ideia kierkegaardiana da reduplicação. O redobrar do pensamento aqui exigido significa a passagem do pensamento à ação, da dialética das ideias à vida, mas também da reflexão primeira que tendo atingido a palavra justa, sabe que tudo resta por fazer, ou seja, passar da expressão correta ao modo de comunicação que traduza a relação exata do existente (locutor ou escritor) com a ideia. Essa reflexão segunda só é exigida na ordem do existencial.
            Nos domínios em que o pensamento objetivo tem sua justificação, a comunicação direta é natural, e pode-se traçar limites exatos que a expressão do pensamento deve impor. O mundo, o conjunto, dos fatos, dos estados de coisas, das situações dadas, deixa-se representar por imagens (Bild), que são como modelos da realidade. Pode-se reconhecer aí os termos e a problemática de Wittgenstein, os dois pensadores tendo sido particularmente concernidos pelo problema do solipsismo da linguagem. Independentemente das menções explicitas de Wittgenstein a Kierkegaard na Conferência sobre a ética, assinalaremos apenas a proposição bem conhecida do Tractatus lógico-Philososphicic: “O que o solipsismo quer fazer entender é inteiramente exato, salvo que isso não se pode dizer, isso se mostra”. Trata-se ai de certo modo, de um contrassenso não insensato. Para Kierkegaard, interioridade da existência não se deixa dizer, se esse dizer é do da comunicação direta, por exemplo o idioma da abstração .  Em seu isolamento, a subjetividade existente vive um “segredo essencial” que é o da vida ética e que difere dos segredos ordinários e contingentes. Enquanto a reflexão primeira e seus resultados podem se dizer e se entender diretamente , um segundo movimento se impõe relativamente a esse segredo, pois dois existentes singulares não podem ser duplamente refletidos da mesma maneira.
            O gênio de Kierkegaard foi conceber e dar corpo a um estilo de comunicação duplamente refletida, feita de artifícios constantemente renovados na ordem da criação literária de ficção e de ensaios. era para dar voz isso na ordem existencial que a Idade Média  chamava de haecceitas.Não bastava indicar teticamente o lugar a partir  do qual o leitor poderia ter do mundo da moral  e da religião uma visão justa. É de forma reflexiva que, reconduzindo constantemente o discurso a si, o autor se apresenta ao mesmo tempo em que se ausenta dessa apresentação. Misturando o gracejo ao sério, o cômico ao trágico, a alusão à argumentação, ele deixa o leitor decifrar sozinho o apelo que eventualmente poderia passar através do que é dito. Enquanto o movimento diretamente perceptível da reflexão segue tranquilamente sua marcha, o da reflexão segunda comporta o trabalho contra si, dialética na segunda potência, espécie de “redobramento em que se considere o sério, comparável à pressão que determina a profundidade do sulco traçado pela charrua”. “Se o pensamento exposto aqui é reduplicado”, a linguagem também será altamente vigiada; nenhuma palavra, nenhum incidente, nenhuma digressão, nenhuma expressão que produza imagem deve ser pronunciada por descuido. Quando o autor se cabe incapaz de “impor diretamente um freio a toda época”, resta-lhe refere-se a si mesmo. “è nesse ponto do existir, e devido à exigência ética endereçada ao existente, que é preciso refrear (at holde igjen), quando uma filosofia abstrata e um pensamento puro querem explicar tudo escamoteando o que é decisivo.”

*a citações entre aspas com o numero das páginas na ordem do texto: Kierkegaard. Post-scriptum.trad.modificada. Oevres completes, XIX-;. p.13, 7, 50, 103, 113,13,189,75.

**Jacques Colette , nascido em 1929 na Bélgica , é um historiador da filosofia . Presidente Honorário da Søren Kierkegaard Society, ele é professor emérito da Universidade de Paris I - Panthéon Sorbonne.

Referência:

COLETTE, Jacques. Existencialismo. 1. ed. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009. 117 p. (Coleção L&PM Pocket ; v.822) – p: 21-25.

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