Existencialismo
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COLETTE, Jacques p.22-25.
Kierkegaard:
a dupla reflexão
“Existir em verdade, portanto penetrar sua existência com consciência, ao mesmo tempo eternamente, por assim dizer, muito além dela, no entanto presente nela, no entanto no devir, eis o que é verdadeiramente difícil.” É nisso que consiste a relação absoluta pela qual a existência se torna imensamente tensa, porque ela precisa efetuar constantemente um duplo movimento “. Esse movimento é fonte de angustia, pois ele consiste em ir em direção ao incondicionado, não para nele se perder, mas para imensamente voltar e reintegrar o campo do relativo e do condicionado. O estatuto da reflexão se revela assim em sua dualidade: como a existência mesma, a reflexão se desdobra na incerteza entre necessidade e possibilidade, entre passado e futuro, entre passividade e atividade entre finito e infinito. “O pensador subjetivo é dialético em direção do existencial; ele é habitado pela paixão do pensamento que lhe permite manter firme a disjunção qualitativa, essa disjunção absoluta em relação à qual a obra da meditação , esse levantamento das metas relativas permanece um coisa subalterna.
O ser-si é reflexão abstrata que na lógica hegeliana (§123,
define a existência como unidade de reflexão em si e da reflexão no outro. entre
esses dois momentos, intervém o que impede precisamente que se realize a unidade,
ou seja, o tempo. O pensamento puro pode pensar o movimento já advindo, o
tempo, passado, a existência finda, mas não o que permanece abstratamente inconcebível,
o tempo, vivido do sujeito real,existente no sentido de ex-sistere, aquilo que o fundou preexiste a ele e permanece além,
sem que se possa articular definitivamente o que funda e o que é fundado. No tempo real, a disjunção
nunca é superada, a existência temporal é o recife que faz naufragar o
pensamento puro segundo o qual o conceito manifestaria seu poder até sobre o
tempo. Subjetivamente vivida, a paixão pelo infinito não tem o infinito como
conteúdo (como aquilo que – quod),
ela só se relaciona a ele segundo a modalidade (quo-modo) da decisão do
instante. “ mas como , que é subjetivamente
acentuado, é ao mesmo tempo, precisamente porque o sujeito é existente ,
dialético em relação ao tempo.
Vale dizer que é impossível a retomada de si na
eternidade da reminiscência, pois reflexão e linguagem não tem outro elemento a
não ser o tempo. A reflexão não é nem simples nem absoluta, ela é dupla. Com a
relação absoluta nunca se chega ao fim, o trabalho da apropriação e, nessa
matéria, não se trata de comunicação direta de resultados, não há efusão
imediata. O duplo movimento (infinito/finito), assim como a comunicação
(apropriação interiorizante/desapropriação exteriorizante), tem a ver com
aquele ritmo discordante evocado também pela ideia kierkegaardiana da
reduplicação. O redobrar do pensamento aqui exigido significa a passagem do
pensamento à ação, da dialética das ideias à vida, mas também da reflexão
primeira que tendo atingido a palavra justa, sabe que tudo resta por fazer, ou
seja, passar da expressão correta ao modo de comunicação que traduza a relação
exata do existente (locutor ou escritor) com a ideia. Essa reflexão segunda só
é exigida na ordem do existencial.
Nos domínios em que o pensamento objetivo tem sua
justificação, a comunicação direta é natural, e pode-se traçar limites exatos
que a expressão do pensamento deve impor. O mundo, o conjunto, dos fatos, dos
estados de coisas, das situações dadas, deixa-se representar por imagens (Bild), que são como modelos da realidade.
Pode-se reconhecer aí os termos e a problemática de Wittgenstein, os dois
pensadores tendo sido particularmente concernidos pelo problema do solipsismo
da linguagem. Independentemente das menções explicitas de Wittgenstein a
Kierkegaard na Conferência sobre a ética, assinalaremos apenas a proposição bem
conhecida do Tractatus lógico-Philososphicic:
“O que o solipsismo quer fazer entender é inteiramente exato, salvo que isso
não se pode dizer, isso se mostra”. Trata-se ai de certo modo, de um contrassenso
não insensato. Para Kierkegaard, interioridade da existência não se deixa dizer, se esse dizer é do da comunicação direta, por exemplo o idioma da abstração
. Em seu isolamento, a subjetividade
existente vive um “segredo essencial” que é o da vida ética e que difere dos
segredos ordinários e contingentes. Enquanto a reflexão primeira e seus
resultados podem se dizer e se entender diretamente , um segundo movimento se
impõe relativamente a esse segredo, pois dois existentes singulares não podem
ser duplamente refletidos da mesma maneira.
O gênio de Kierkegaard foi conceber e dar corpo a um estilo
de comunicação duplamente refletida, feita de artifícios constantemente
renovados na ordem da criação literária de ficção e de ensaios. era para dar
voz isso na ordem existencial que a Idade Média
chamava de haecceitas.Não
bastava indicar teticamente o lugar a partir
do qual o leitor poderia ter do mundo da moral e da religião uma visão justa. É de forma
reflexiva que, reconduzindo constantemente o discurso a si, o autor se
apresenta ao mesmo tempo em que se ausenta dessa apresentação. Misturando o
gracejo ao sério, o cômico ao trágico, a alusão à argumentação, ele deixa o
leitor decifrar sozinho o apelo que eventualmente poderia passar através do que
é dito. Enquanto o movimento diretamente perceptível da reflexão segue
tranquilamente sua marcha, o da reflexão segunda comporta o trabalho contra si,
dialética na segunda potência, espécie de “redobramento em que se considere o
sério, comparável à pressão que determina a profundidade do sulco traçado pela
charrua”. “Se o pensamento exposto aqui é reduplicado”, a linguagem também será
altamente vigiada; nenhuma palavra, nenhum incidente, nenhuma digressão,
nenhuma expressão que produza imagem deve ser pronunciada por descuido. Quando
o autor se cabe incapaz de “impor diretamente um freio a toda época”, resta-lhe
refere-se a si mesmo. “è nesse ponto do existir, e devido à exigência ética
endereçada ao existente, que é preciso refrear (at holde igjen), quando uma filosofia abstrata e um pensamento puro
querem explicar tudo escamoteando o que é decisivo.”
*a citações entre aspas com
o numero das páginas na ordem do texto: Kierkegaard.
Post-scriptum.trad.modificada.
Oevres completes, XIX-;. p.13, 7, 50, 103, 113,13,189,75.
Referência:
COLETTE, Jacques. Existencialismo. 1. ed. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009. 117 p. (Coleção L&PM Pocket ; v.822) – p: 21-25.
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